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domingo, 21 de abril de 2013

História malograda

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Meu nome é José. A noite passada tive um sonho horrível. E confuso. Um enredo impensável. O inconsciente inventa histórias impossíveis.
Sonhei que casava com uma menina linda, Maria. Tive um filho. Mas eu ia dar ao mundo esse meu filho mais amado. E isso me faria sofrer.
Depois de adulto, ele saiu de casa, abandonou a família. Passou a andar no meio de estranhos e a dizer coisas estranhas. Era seguido por muitas pessoas. Só amava um pequeno grupo, a quem tratava agora como sua verdadeira e única família. Eu e a mãe ficávamos muito tristes, porque ele parecia amar aos outros e não a nós. Achávamos ingratidão.
No final, e isso eu não consegui entender bem, ele repetia, claramente, para todo mundo, que seu pai era outro. E eu, que o havia criado como um filho dileto, fui impedido de estar perto dele, quando foi morto. No sonho, eu deixava de ser seu pai para sempre.
Acordei assustado. Será um aviso? Prometi a mim mesmo nunca me casar.

(Resolvi repostar o conto, que já havia sido postado há algum tempo).

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domingo, 24 de março de 2013

Glaura, poemas eróticos*


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais – RJ)

Glaura era meio gordinha. Mas tinha uma cara alegre. E era amiga de dizer umas graças, piscando um olhinho malicioso. Um cabelo quase louro e ondulado emoldurava tudo, dando-lhe um ar de anjo barroco e um pouco safadinho. Enlouquecia os rapazes.
Contava que tinha todo um livro de poemas em sua homenagem. Declamava umas duas quadrinhas. Nem ela sabia que a obra era de 1799. Pois nenhum duvidava que um poeta tivesse feito mesmo mil poemas para ela.
Apesar de umas gordurinhas, os olhos dos homens estavam sempre nela, quando passava, sacudindo o traseiro, involuntariamente, umas saias ligeiramente godet, parecia de propósito. Uns vestidinhos mais para curtos – principalmente atrás, que culpa tinha ela! – e sempre umas sandálias de plataforma faziam o andar irresistível.
Tão mocinha, diziam que era viúva. Duas vezes. Que fossem dez, todo mundo já tinha entrado na fila.

*A personagem se refere – sem saber – à obra de de Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), poeta do Arcadismo mineiro, participante da Inconfidência Mineira. Abaixo uma quadrinha dali:

Voai, Zéfiros mimosos,
Vagarosos, com cautela;
Glaura bela está dormindo,
Quanto é lindo o meu amor!


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sábado, 16 de fevereiro de 2013

Velório

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Faz dois dias que Otília morreu. Ela ficou no escuro, o cheiro adocicado de flores e toda a transformação que deve estar ocorrendo em seu corpo. O ar viciado, um bafo quente e nauseabundo dominando seu pequeno espaço. Otília, minha querida Otília.
Me agarrei a seu corpo, não queria deixar fecharem o caixão, levarem embora. Os amigos tiveram de me tirar à força.
Armando queria me levar para a casa dele. Neguei. Depois queria subir comigo. A custo, eu disse que precisava ficar só. Ele concordou. Não, não, era Osmar.
As cortinas estão fechadas e o escuro domina a sala. Só me levanto para ir ao banheiro. Não como nada e já sinto uma tontura grande, as ideias se embaralham o tempo todo e tenho de ficar deitado. Não sinto fome, nem sede.
O telefone, desliguei, depois de ter tocado desesperadamente, nesses dias. Otília morreu há três dias. Ou foi ontem?
Escuto vozes no corredor. É isso? Vozes longe. No cemitério, também ouvi vozes longe. A campainha tocou muito. Bateram até na porta. Não sei mais quando foi. Talvez hoje de manhã.
Estão tocando a campainha novamente. E socando a porta. Gritam lá fora. Muitas vozes. Alguém chama meu nome. Parece que enfiaram uma chave. Eu tranquei os segredos.
Há um barulho grande. Estão forçando a porta. Sinto barulho de madeira partindo. Vão abrir o caixão?
- Otília, Otília, vão tirar a gente daqui!

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domingo, 20 de janeiro de 2013

Fábula



Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Dois gatos na beira da calçada. Um passarinho meio morto no meio.
Olhavam-se arrepiados. Um gemido estranho e alto ia da boca de um para a boca do outro. Dois olhares de ódio, exame e provocação.
Não se mexiam, como duas cobras encantatórias. Só os rabos balançavam, vagarosa e ameaçadoramente, completando a imagem.
Estudavam-se, pura cautela. Cada um tentaria imaginar o movimento próximo do outro e se preparar para defender a presa, dono legítimo da ave, que nunca acabava de estrebuchar?
Na verdade, a atenção de cada gato estava voltada para o adversário, ignorado o alimento, que se contorcia, o rival o único e indiscutível objeto de prazer.

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Guerra santa?


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ) 

Abriu o papel colocado em sua caixinha de correio. Era uma pregação religiosa, escrita em um papel pautado e de mau gosto. “Que abuso!”, pensou. Quem deu autorização para aquilo ser colocado ali? 
Perguntado, o porteiro disse que não sabia de nada. Não tinham pedido autorização ao síndico. 
Podia reclamar, proibir a colocação em seu escaninho. Mas preferiu outro caminho.
Já em casa, escreveu outra mensagem contestanto todas as palavras. Fechou, assinando-se “um ateu.” Como não sabia de quem se tratava, fez várias cópias e colocou de volta, no espaço do correio de todos os apartamentos.
Não sabendo igualmente a origem da resposta, outra mensagem do asceta foi escrita, refutando a segunda e colocada, de novo, coletivamente.
Quando chegou, à tarde, ao pegar as cartas rotineiras, novamente um ataque de raiva. Foi direto responder, agora já subindo o tom.
No dia seguinte, perscrutou sua caixinha do correio, bastante ansioso. O prédio inteiro já acompanhava a disputa. 
Sentado no sofá, viu que o outro também recrudescera na resposta. Era digna de um cruzado, de um templário, de um evangélico indignado. Chamava-o de ímpio, dizia-o capazes de coisas atrozes, punha em pessoas iguais a ele a culpa por crimes hediondos, recentemente cometidos – eram citados todos, um a um. 
Os comentários começaram a grassar. O síndico já estava disposto a descobrir quem eram os dois engraçados e a acabar com aquilo, mas os vizinhos disseram que não. Acompanhavam o caso, como quem acompanha uma novela. 
Como ouviu, por acaso, no elevador, uma conversa em que um dos moradores falava da intenção do síndico de descobrir e multar os dois, o primeiro missivista resolveu recolher, pelo menos temporariamente, seu sermão religioso. O outro, como não recebesse mais nenhuma provocação, também ficou silencioso, aguardando a próxima jogada do oponente.
Quem não gostou nada daquilo foram os outros moradores, que tinham garantido muita gargalhada no final da tarde. E, estranhamente, as caixinhas do correio começaram a ser inundadas por uma coleção variadíssima de provocações de ateus e pregadores, dos mais variados estilos. 

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sábado, 10 de novembro de 2012

Armageddon

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Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Um estrondo. Era o fim do mundo.
Acendeu a luz. Não entendeu logo. A copa de uma árvore entrando pela janela aberta.
Uma revoada de passarinhos no quarto. Batiam em seu rosto. Voavam desesperados para todos os lados.
Abaixou-se no chão. Viu uns três. A árvore da rua havia quebrado e caído sobre sua janela, com certeza. Já tinham previsto aquilo e reclamado. Ninguém tinha vindo cortar.
Atordoadas, as aves não sabiam o que fazer. A luz acesa piorava. Chocavam-se de um lado para o outro, tão desnorteados como seu coração, que também batia desesperado nas paredes do peito. Sentia vertigem.
Apagou a luz e saiu do quarto, tropego, tentando recobrar a lucidez. Ficou olhando do corredor, tentando se acalmar, estatelado contra a parede. Ainda via os pobres bichos zanzando, semi-iluminados pela luz da rua, filtrada entre os galhos.
Uma surpresa, era isto. Uma surpresa para ele, em seu mundinho de sono, tranquilo. Aquilo era o imprevisto, a invasão do inesperado, de um mundo desconhecido. Acordado por seres de outro planeta. Pássaros são bucólicos e belos, quando voam no céu, quando pousados nas árvores e fios, quando pressentidos em seus ninhos nas árvores. Desse modo, pertencem ao nosso mundo. Entrando pelo quarto, à meia-noite – que horas seriam? –, equivaliam a vampiros, que invadem traiçoeiros.
Uma surpresa para eles também. Que susto não sentiram ao ver seu mundo desabando, quando foram jogados ali dentro, quando a luz se acendeu, como câmara de tortura! O pavor do inesperado. Do inimaginável. A desagregação de seu universo.
E ele ali, a andar, tonto, como ser de outro planeta. Seu quarto era outro planeta. Presos entre aquelas paredes, sem possibilidade alguma de fuga.
Com toda a cautela, voltou agachado ao quarto. Já não ouvia barulho. Deviam estar pousados, estatelados contra a parede também, tentando entender o que tinha acontecido. Aproximou-se da janela, afastou como pôde alguns ramos, deixando passar a claridade dos postes para que a abertura fosse vista.
Pegou, sorrateiramente, uma roupa para descer até a rua. Já ouvia vozes assustadas lá embaixo.
Quando voltou, bem mais tarde, seu mundo estava de volta.

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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O sábio não chinês

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Ficou admirando a estatueta “no seu momento”, como chamava algumas horas da manhã que dedicava à leitura, sentado na biblioteca, diante de uma estante cheia de livros.
Era muito bonita mesmo, de porcelana fina. Fina e cara. Era um sábio chinês antigo, de uma daquelas dinastias, como havia lhe avisado o dono do antiquário. Intelectual, a comprara por amar os livros e as obras de arte. E, quando em um daqueles momentos tinha levantado a cabeça para refletir sobre o que estava lendo, batera com os olhos nela.
Mas o que seria um sábio, chinês ou não? Ele responderia às questões da vida? Daria conselhos às pessoas? Saberia, por fim resolver, com facilidade, as questões da própria vida? Um sábio seria mais feliz que as outras pessoas?
Nesse caminhar, lembrou-se de um velho, meio desdentado, que vivia numa cidadezinha do interior, onde tivera um sítio há muitos anos.
O velho não tinha profissão. Aliás, o velho não tinha nada, uma casinha de um cômodo, caindo aos pedaços, se é que aquilo podia ser chamado de casa. Vivia de expediente, como o povo diz, capina aqui, retira entulho lá. Ganhava só para comer... e mal. Fora a caridade do povo do lugar, um pouco menos pobre, que gostava muito dele.
Não sabia ler e não tinha ideia de absolutamente nada mais que não as cercanias em volta. Ia muito raramente até o centro de comércio, com muito susto. Não sabia que havia um mundo enorme em volta dele.
Um dia lhe perguntaram se ele havia votado para presidente. Ele perguntou se presidente era o mesmo que “perfeito”, que ele pronunciava com um “r” muito palatal. Então perguntaram, de novo, se ele sabia o que era um prefeito. “É o dono de tudo em volta, até da cidade”, disse rindo muito, todo contente da explicação.
- Até de você?
- Inté! – e riu mais ainda, talvez por se sentir, assim, protegido.
Contava que dormia muito bem. Que era isso que um homem feliz devia fazer. Não sem antes agradecer pelas coisas boas que tinha.

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domingo, 23 de setembro de 2012

A escada em caracol

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais) 

Desde que se entendera por gente via aquela escada em caracol no segundo andar da casa, indo para um terceiro, supostamente. A meio caminho havia uma porta e ele não podia passar.
Tinha perguntado várias vezes se a escada terminava ali, mas os adultos diziam que não, “era bem comprida.” Quando perguntava onde ia dar, respondiam que “a lugar nenhum”. Ora, aquilo não fazia sentido. E sempre tinha guardado a impressão que a resposta era uma mentira. Que havia um mistério, portanto, naquilo. E a imaginação se alimentava do enigma.
Já maiorzinho, tivera a ideia de olhar por fora da casa. Mas só tinha visto o telhado, que era bem alto em verdade. Haveria algum outro cômodo ali?
Com a adolescência, vieram os estudos rigorosos, provas, concursos e ele nem teve tempo de reparar mais no princípio da escada e sua porta.
Até que se mudaram para outra residência e, finalmente, para outro estado. E a escada lá ficou, na casa grande e antiga e no fundo de sua memória mais preciosa.
Nunca soube explicar por quê, mas sempre que um problema qualquer o perturbava, uma desilusão, uma contrariedade, uma tristeza, sua mente fugia do presente e tentava subir por aquela escada, abrir sua porta. Haveria algum abrigo misterioso naquele terceiro andar. E foi assim pela vida à fora.
Um dia, sem querer, às vésperas da aposentadoria, viu no jornal um anúncio de uma casa, lá em sua cidade natal. Chamou-lhe a atenção o endereço, viu que era a velha casa da infância. Por procuração com parentes, comprou-a.
Então voltou à cidade. E, quando finalmente subiu, havia um cheiro de mofo naquele acesso ao andar superior, com suas voltas contínuas. Lá em cima, outra porta, dando para lugar nenhum: uma espécie de diminuto terraço, atrás da casa. Como a gradinha era muito baixa, representava perigo para uma criança. Seria aquele o motivo de tanto segredo?
Tinha um plano de reformar o imóvel e morar ali. Mas a porta da escada continuaria trancadíssima, estimulando o devaneio dos pequenos. E não permitindo que seu tesouro escapasse. A escada em caracol levava direto ao andar da fantasia.


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domingo, 9 de setembro de 2012

Parábola * III

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Nasceram no mesmo dia. O pai, professor latinista, resolveu chamá-las de Letícia – alegria – e a outra, o seu contrário: Tristícia.
No entanto, a gêmea mal agraciada pelo nome, mostrou que quem escolhia seu destino era ela: mamava muito, chorava para ser colocada no colo, sorriu primeiro, andou primeiro, leu e escreveu primeiro, estudou mais e melhor.
A outra, desde o berço era enfezadinha: ficava lá, quietinha, e não fosse a mãe tomar conta das mamadas, morria de fome, sem um gemido, só dormindo.
Sempre foi magrinha, embora a mãe a entupisse de comida, para ver se crescia, engordava, perdia a apatia. Ao contrário da irmã, que entrava em todas as brincadeiras, até disputava com os meninos nas corridas. E ganhava. Músculos fortes, sorriso franco e eterno.
Letícia, sempre à sombra, tímida, na adolescência, não era convidada pelos rapazes a dançar. Nem sobravam rapazes para ela namorar, pois Tristícia tinha todos à sua volta.
Letícia morreu muito nova. E, mesmo a pouca vida que viveu, foi vivida pela metade. Trísticia, longeva, sempre provou que a vida era pouca para ela.

*"parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.] S. f. 1. Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior... " (Dicionário Aurélio - Século XXI - versão digital)

"(pa.rá.bo.la)
sf.
1 Narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior, encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos." (Aulete - dicionário digital)

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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Eternidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais) 

Parado ali. Esperava o momento entre dezoito horas e dezoito e trinta. “Desce alegre e sorridente, os homens todos em volta, 'colegas de trabalho', diz. Homens. Ela adora homens.” Faltam três minutos.
Debaixo da camisa: “Esse peso apertando a barriga.”. Apalpa. Tem de estar à mão. Para puxar. Às seis e meia. “Vai funcionar? Será que eu sei?”.
Quer ver o sorriso morrer na boca. Entre seus homens. “Só colegas de trabalho!”. Vagabunda.
Olha o relógio: faltam ainda três minutos? Esse relógio não anda. “Está parado?”. O ponteiro de segundos pulando, alegremente.
“Ainda bem: faltam três minutos.”.  Um grande frio na barriga. Medo enorme. O frio é por dentro. Não é do estorvo enfiado pelo cós das calças.
Aguentou tudo. Ver a cretina sempre cercada de homens, quando ia buscar. “Você é ciumento demais”, ouviu. “É obsessivo”, “É doente, procure um médico”. E os homens. Sempre os homens. Raramente via uma mulher ao lado.
“Não aguento mais você!”. Um dia chegou, ela tinha ido embora. Era aquilo que queria. Ficar solta, ficar livre. E o doente era ele. Ele é que aguentou muito, aguentou tudo. Todas as humilhações. Agora é o fim. “Faltam dois minutos?”. “Faltam dois minutos!”.  Suspirou aliviado.
Não sabe o que vai haver depois. “Não importa!”. Olha o relógio: faltam dois minutos para se livrar daquele desespero, dia e noite, dia e noite.
Mesmo estando em casa, representava mentalmente a desgraçada saindo pela porta do edifício, rindo-se com seus homens. Lá dentro é o escritório. “Imagino o que fazem ali.”
“Agora que está sozinha, deve ir-se deitar em lugar mais confortável.” Morde a ponta dos dedos, arranca pele, que sangra. Apalpa a cinta. “O médico está aqui na cintura. Um homem precisa de paz. Ainda não são seis e meia. Ela deve estar saindo.
Aperta os olhos turvos, tontos. “Ela... os homens!!!”
Ouviu o tiro. Nem sabe de onde saiu. 

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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Marina de Luísa

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Moravam em uma casinha rosa em, cidade do interior. Faziam doces e salgados para fora: festas, bares e restaurantes. Não ficariam ricas, mas viviam bem, a ponto de ajudar muitas pessoas desvalidas da cidade.
Eram muito queridas de todos. Conhecidas como Marina de Luísa ou Luísa de Marina.
A primeira era mais comunicativa, um enorme senso prático. Luísa, mais retraída e meiga. Igualmente procuradas, ajudavam a quem necessitasse.
Na rua, eram paradas a todo instante, cumprimento de um, abraço de outra, velhos e novos, crianças agarradas às pernas. A todos, um carinho, um prato de comida, uma dentadura necessitada, uns óculos para perto; cadernos, lápis e livros didáticos para os pequenos. Viviam batendo à sua porta.
Até que Marina deixou escapar para pessoa amiga e íntima, a quem já haviam tirado de grandes dificuldades, que ela e Luísa dividiam o aluguel, a comida e a cama. Foi o escândalo da cidade. Mas elas não ficaram sabendo. Nenhum dos que vinham a sua casa se salvar dos naufrágios veio avisar de que a cidade toda murmurava sobre elas.
E todo mundo sumiu. E as encomendas dos restaurantes, dos bares e festas.
Viram-se mal as duas, assim de uma hora para outra. Tentando achar a resposta, Marina chegou, finalmente, à revelação.
Sem solução, a moça resolveu oferecer o que faziam em cidade maior. A despesa aumentaria com a passagem do ônibus caro, mas não havia solução.
Embora o trabalho e cansaço para se fazerem conhecidas como quituteiras, no final, a coisa acabou saindo melhor do que antes. Vendiam mais  e mais caro.
Como as questões materiais são mais prementes que as morais, os problemas financeiros tornaram a bater à porta dos moradores da cidadezinha, logo, logo, e eles deixaram a intolerância de lado. Um pedidozinho aqui, outro acolá, e  começaram a voltar.
E passaram – para não se comprometerem – a chamar Marina ou Luísa “da casa rosa”.
As moças não se negaram a atender. Mas Marina, por uma questão prática, convenceu Luísa a se mudarem para a outra cidade.

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sábado, 16 de junho de 2012

Encanador

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Entrava na casa das pessoas. E ia para as partes mais íntimas de suas casas: cozinha, banheiro.
Podia ser uma visita rápida, mas era raro. Normalmente, passava o dia todo, às vezes dias. E ia para as partes mais íntimas de suas vidas: ouvia tudo o que se passava ali, sem querer, sem pedir.
Depois de uma visita dessas, raramente olhava para as pessoas e as via do mesmo modo que antes.
Filósofo, descobriu logo que aquilo que entupia e vazava não eram os canos de muitos anos, apodrecidos e embutidos nas paredes. Mais antiga, pré-histórica era a alma humana, corroída por suas velhas e eternas questões. Para essa, ele não tinha solução.

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domingo, 27 de maio de 2012

Volúvel

Eliane F.C,Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Observa da sacada o que o vento faz com um papel que roubou, indomável ladrão, de uma janela desavisada, no fim da rua: imprensa-o contra um muro em suas mãos invisíveis. Desde que caiu ali, o vento se diverte com ele, sem piedade. Só quando se cansar da vingança ou por sorte o desgraçado cair no bueiro próximo, estará findo seu suplício.
Oprimido pela visão, sabe exatamente o que o pequeno mártir está passando. É exatamente assim que a vida fez com ele. Há muitos anos que um vendaval o joga daqui para ali, igualmente tonto, igualmente indefeso, igualmente vítima de uma vingança. De qual, não sabe. Quem saberá? Tantos passam pelo mesmo.
Vivia tranquilo, inconsciente de sua felicidade. Que a gente só sabe da felicidade, quando não tem mais. Sem grandes exageros, ia seguindo seus dias de perfeição.
Até tudo virar. Teresa morreu de repente. O filho resolveu trabalhar em outra cidade. A filha, sempre tão séria e estudiosa, se apaixonou por um malandro. Criticada, relacionamento não aceito, foi embora com o tal.
E ele ficou ali, sozinho, tentando se agarrar nas lembranças boas do passado, as lufadas de vento forte já rodopiando com ele. E vieram as doenças: uma, duas, três. O médico disse que a causa era a depressão, o estresse dos problemas. A causa não importa. Ao papel, só lhe interessa que o vento pare ou que ele seja empurrado para dentro do bueiro escuro.

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sábado, 12 de maio de 2012

Noite em fora

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ) 

Chegou devagar, atendendo ao chamado. A luz era pouca, de abajur.
Sentado à poltrona, um homem lia. Parecia absorto, interessado. Às vezes, um sorriso leve, apenas pretendido. Sabia exatamente que trechos ele estava lendo. Aqueles de pura ironia. Ele próprio se deliciara com eles, tão cuidadoso, quando escrevia.
Sentou-se também, outra poltrona em frente, na penumbra. E ficou ali, alimentado-se das expressões do outro, seus ligeiros esgares de prazer, adivinhava.
Passaram-se duas horas até que o outro se levantasse, preparasse a cama que ficava adiante, se despisse, apagasse a luz.
Permaneceu sentado no escuro, respirando as últimas emanações da leitura daquele homem. Parecia de poucas posses, morando num quarto. Mas, quando chegou, reparou nas duas estantes de livros, que disputavam espaço com a passagem. Livros bons, muitos clássicos. E seu livro tinha entrada garantida.
Avançou o corpo para um banco ao lado da poltrona e viu, forçando a vista, mais dois livros de sua autoria.  
Tinha sido chamado assim que os olhos do outro começaram seu bailado pelas páginas que tinha escrito. Antes não tinha esse prazer, não podia saber. Agora era chamado, atraído era o termo melhor. Aquela sensação de estar sendo convocado, invocado, evocado, na verdade. Vinha sem poder se negar. Involuntariamente. E vinha, existência perpetuada.
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domingo, 8 de abril de 2012

Jogos urbanos II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sempre pensava nisso. Sentado na mesa do atendente – gerente de banco, repartição pública –, via aquele monte de papéis que o funcionário examinava ou catalogava antes de sua chegada. Quando esse se levantava para pegar alguma coisa, imaginava pegar um bolo do meio daqueles, enfiar na maleta que carregava e, ao final do atendimento, levar. Até que fez.
E a adrenalina que sentiu disparar-lhe o coração, enquanto o outro ia falando inocentemente ou mandando assinar, sem perceber o que ele tinha feito, era incalculável. Nem rapel, nem Bungee Jumping, nem escalada de montanha, nem jogar na roleta ou nos cavalos, nem saltar de paraquedas era igual. Estava arriscando tudo. E se o interlocutor desse por falta dos documentos andes dele sair e sumir?
Pés na rua, se meteu no meio dos passantes, entrou no primeiro ônibus que apareceu, estatelado no banco, ofegante, pálido, no peito uma locomotiva desgovernada, sem maquinista.
Muitas ruas depois, saltou, foi pegar o metrô. Mais calmo, começou a rir discretamente. Que aventura!
Precisava se lembrar do lugar onde tinha feito aquilo. Cuidado para não repetir. Pensou no gerente, louco, “Onde está, meu Deus? Tenho certeza de que pus aqui!”. Afastou o pensamento ligeiro.
Em casa, pensou em olhar o que era, de quem era. Não! Isso não! De repente, podia bater o remorso. E estragaria o prazer do brinquedo. Precisava dar um tempo, não se arriscar, não ficar visado.
Embrulhou os papéis, colocou em um saco bem amarrado e, no dia seguinte, na ida para o trabalho, jogou em um lata de lixo no centro da cidade.
Peito renovado, ia aguardar, pacientemente, a ocasião de uma nova aventura.

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domingo, 4 de março de 2012

Viés

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

“Eu dissociado”, diz a psicologia. Havia dois dentro dele. Um que dizia “faça isso” e outro que respondia, sacudindo a cabeça, veementemente: ”Não faço!”
Mas, fora dele, muita gente sempre lhe dizia “faça isso”. E ele não respondia. E não respondendo também respondia: “Não faço!”. “Autista”, diz a psicologia. Mas havia dois dentro dele. Autistas?
E, fora dele, muita gente também dizia para muita gente: “Faça isso.” E muita gente achava até que não fazia. Mas acordava de manhã para ir trabalhar, mas pegava o ônibus entupido de outra gente que também pensava que não fazia, mas tirava da garagem seu carro comprado à prestação em seis anos e ia para o engarrafamento de horas, mas gastava o pouco dinheirinho que sobrava no dia das mães, no dia dos pais, na véspera do Natal, no dia dos namorados, no CD do último cantor sertanejo, no show do cantor estrangeiro decaído que vinha ao país, tudo porque não aceitava o “faça isso”. Independente.
Ele tinha a mesma roupa antiga, que durava muito. A mesma tevê que não era LCD. Andava a pé. Não aceitava cartão de crédito. “Sociopata”, diz a psicologia.

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domingo, 5 de fevereiro de 2012

Invulgar

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

As calçadas estavam cobertas de flores lilases, que não se sentiam constrangidas por se esparramarem até o asfalto.
Na primavera – era primavera! –, as glicínias, que se estendiam por sobre todos os muros das casas, irreverentes e espaçosas, transbordavam para fora, tomando conta de tudo. O passante se sentia homenageado, tendo aquele tapete desdobrado para si.
A rua era famosa pelo colorido aveludado. Mas, nem por isso, abria mão de ser silenciosa e requintada. Vez ou outra passava um carro, caro, importado, da mesma gente que mantinha aqueles jardins cuidados, aquele silêncio perfumado e cromático.
Mas, nem por isso ainda, naquele dia, deixou de haver um corpo caído no meio das flores, atrevendo-se a manchar-lhes a suavidade lilás com seu vermelho impudico e derramado.
Mas não foi só: o atrevimento se estendeu aos carros de polícia que também ousaram quebrar o requinte estabelecido para veículos e vieram se postar ao longo do meio-fio. E violentaram o silêncio dos requintados com suas sirenes obscenas.
E houve mais: as fotos da imprensa, que se avolumou nas calçadas, em volta das árvores, encostando-se nos muros violáceos, que quase se encolhiam com a ousadia.
E aqueles pés, atrevidos, pela primeira vez, coagiram as flores lilases, ofendidas ante a surpresa da invasão.

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sábado, 21 de janeiro de 2012

Parabola III

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Foi parar no meio do bloco. Não soube como. O “Bloco do empurra”. Que fazia jus ao nome. A bandinha, porém, empolgante, tocava alegremente marchinhas de carnaval.
E ia, sambando, na verdade, porque, apesar dos encontrões de todos os lados, era tudo muito divertido.
Lá para o meio, cansada, pretendeu sair. De que jeito, naquele roldão de todo lado? Impossível. E mais empurrão. Agora sentia pressão até de cima, de vez em quando. Parecia que estava encolhendo. Não sambava mais, só ia.
E, pela primeira vez, se deu conta de que aquela bandinha alegre não tocava mais. O som musical que ouvia era plangente, pungente. No entanto ainda ia, sendo levada.
Lá na frente, soerguendo-se sobre os cotovelos, viu, finalmente a bandeira tremulante: “Bloco do empurra... que cai.”


Advertência: Ver verbete do Dicionário Aurélio – século XX, dicionário digital:

“parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.]
S. f.
1.Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior...”

Muita literatura de boa qualidade em Literatura em vida 2 (aqui) e poemas meus (aqui) em Poema Vivo.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Presente

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Vou para o trabalho de metrô. Em pé, na maioria das vezes, vou sonhando. Caso-me em breve, daqui a um mês. Mas não é na noiva que penso ou nas delícias da vida a dois. À minha cabeça, sempre vem um filho.
Primeiro bebê, abraço-o, beijo-o. Ternuras de mãe, penso com um sorriso, porque, quase sempre, quem sonha com filhos são as mulheres. Sou exceção.
Aceno para ele, desde o berçário, ali, enroladinho. Depois, vêm os primeiros dias, os choros à noite, cólicas, ninguém dorme. Nem eu. Passeio com ele, para lá e para cá, dando descanso à mãe. Deve dormir, porque não a vejo ao meu lado. Nem penso nela.
E vêm doenças, febre, ameaça de pneumonia, noites em claro, dando remédio, dorme, acorda, dorme, acorda. Cambaleio e quase caio – será aquela curva violenta que o metrô faz entre duas estações?
Depois a escola. Ensino as lições, na volta do trabalho, já cansado, querendo ver televisão, cochilar no sofá.
Sou chamado à escola e vou, envergonhado, “esse moleque apronta todas, deve ter puxado à mãe”, eu sempre fui um menino quieto e tímido. Bate nos colegas, faz desaforo para a professora. Tira notas baixas na escola, não quer saber de estudo, só joguinhos, televisão. Vive de castigo, nem liga mais, porque sempre dá um jeito de se divertir, nem que seja torturando o cachorro, quietinho, sentado no sofá. Só escuto o ganido do bicho. Corro. Ele com aquela cara de surpresa: “Ué, o que é que esse bicho tem?”
Adolescência é o futuro das crianças. O telefone não para – porque os bandidinhos sempre fazem sucesso com as mulheres? –, nem a conta, que só sobe. E a de energia elétrica e água. “Desligue esse telefone, esse chuveiro, esse computador, esse som, esse... “ são as minhas frases o tempo todo. Meus finais de noite são de desespero, só superados pelos finais de semana.
Não sei quantas noites passo me torturando, telefonando para a casa de todos os amigos – o endereço e telefone que ele deixa, quando sai, não conferem. Porque o celular dele ou está desligado ou é impossível se ouvir alguma coisa que “alguém” fala – será ele mesmo? – no meio daquele zoeira horrorosa que ele chama de música.
Depois vêm os casamentos, um, dois, três. E filhos, e mulheres reclamando, “esse seu filho é um cafajeste, o senhor não se vexa de não ter dado vergonha e educação a ele? Com certeza aprendeu com o senhor, que também tem cara de safado!”.
E ele sempre vem morar conosco – o que será que a mãe dele acha? Nunca a vejo assumindo ou sofrendo com as canalhices de nosso filho. E vem na maior cara de pau, dando despesa, ficando completamente à vontade, como se nunca tivesse crescido. Algumas vezes traz, quando saímos, mulheres para dentro de nossa casa: “Desculpe, estava sem dinheiro para motel.”
Quase perco, de novo, a estação onde tenho de descer. Dessa vez foi demais. Dizerem que tenho cara de safado?! Trazer mulher para dormir em minha cama de casal?!
Estressado, chego ao limite. E, inconscientemente, arranco a aliança de noivado e guardo no bolso para vender.

sábado, 26 de novembro de 2011

Do outro lado

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Morreu. E foi direto para o inferno. Porque tinha feito em vida tudo que prejudicava o próximo. Sem nenhuma preocupação sobre isso. Seu único objetivo era atender a seus interesses pessoais, fossem eles desonestos ou não, ilegais ou não, desumanos ou não. Armou muitas trapaças, sempre com aquela finalidade. Morreu.
E viu-se logo diante do diabo ou um seu representante, não sabia bem. Viu que o tal correspondia, na aparência, exatamente, ao que todos imaginavam. Embora ainda um pouco confuso pela mudança de estado, pensou, velhaco ainda, que aquilo podia ser para impressionar o recém-chegado. Mas não pôde evitar que o medo se apossasse de si.
Seu interlocutor, com uma voz meio rouca, mandou que ele contasse tudo que tinha feito em vida. E que pensasse bem, que não mentisse, pois, se algum mal tinha feito antes, no mundo dos vivos, a mentira, agora, para ele, diabo, seria uma ofensa grave. E sorriu, mostrando um calhamaço de papéis, acrescentando que sua vida estava toda ali, nos mínimos detalhes.
O homem já ia argumentar que, se o outro sabia de tudo, não fazia sentido, então pedir a ele para contar, mas calou-se a tempo, vendo que não estava em condições de fazer desaforos.
E contou. Foi desfiando minuciosamente todas os seus ardis para garantir seu passado bem-estar. A princípio com um fio de voz, a garganta entalada, respirando com dificuldade, todo o corpo tremendo, o coração quase parando. Não de remorso, só de medo.
Reparou, porém, que seu interlocutor, que, no começo estava escarrapachado na enorme cadeira, foi levantando o corpo, chegando-se para a frente, para a ponta do assento, como se não quisesse perder um lance que fosse do relato. E seus olhos brilhavam vivamente, os olhos grudados na boca do falante, adivinhando-lhe as palavras futuras, embebendo-se de suas feições. Todo ele era a própria encarnação do gozo.
Para testar – uma das estratégias do ex-vivo, em vida, era conhecer o terreno onde pisava –, ele contou certos pormenores mesquinhos que poderia ter evitado. O outro sorriu, contente, deliciado. A palavra que veio à mente do que narrava foi “cúmplice”.
No fim, ainda sorrindo, o demo deu um tapinha camarada na perna do homem. Esse, entendendo que aquele era o lugar perfeito para o perdão de seus pecados, ouviu do capeta, companheiro, que andava precisado de um auxiliar, levando-o, fraternal, às suas novas funções.

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domingo, 6 de novembro de 2011

Quase uma onda verde

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Eram muito preocupados com o meio ambiente. Filiados ao Greenpeace, assinavam todos os manifestos a favor do futuro do planeta. E de proteção às baleias, bebês-focas, peixe-boi, todos os animais em extinção, enfim.
E tome de sacola e papel recicláveis, de lixo com separação seletiva, óleo queimado recolhido em garrafa para ser reaproveitado. Não havia um comportamento ecológico correto que o casal, tomando conhecimento, não passasse a ter, religiosamente.
Compraram, um dia, um terreno na serra, muito verde, clima especial, ar puro, uma cascatinha ao fundo, uma visão magnífica do lugar, no alto da colina. Duas árvores frondosas, cheias de ninhos de pássaros. Exigiram do arquiteto uma planta que deixasse as duas em paz e garantisse a sobrevivência de seus moradores naturais. As aves estavam no mesmo nível que as baleias, não vê?
Quiseram teto que captasse a energia solar, reaproveitamento da água do banho para a privada, caixa d'água que recolhesse a água da chuva para molhar plantas, lavar varandas.
Quando a obra ia começar, o terreno teve de ser limpo. Lá se foram todos os viventes daquele mato enorme. Correram cobra, lagarto, sapo. Apesar de terem ficado preocupados, ainda havia muito mato em volta para eles se abrigarem, o marido ponderou.
Casa pronta, foram passar as férias lá pela primeira vez. À noite, céu tão estrelado que parecia com risco de cair na cabeça. Quando o homem se sentou na varanda, o que lhe caiu em cima foi uma lagartixa. Deu um pulo, dando um monte de safanões e não pôde segurar um “Que bicho nojento!”. A mulher, ao lado, caiu na gargalhada, mas ficou de olho vivo em duas outras que passeavam calmamente. Todas estavam ali, desde que a obra tinha começado, para comer os mosquitos, que vinham aos montes, fartar-se com o sangue dos operários.
Só então os dois, que já tinham começado a se estapear por causa deles, notaram que a casa, janelas todas abertas, estava invadida por uma nuvem.
Passaram a noite acordados, porque não tinham trazido aqueles aparelhinhos elétricos de inseticida, imagine, logo eles, tão conscientes. Nem repelente.
Dia seguinte, foram a um supermercado no centro e, relutantes, tiveram de comprar.
Antes de escurecer, tristonhos, foram fechando as janelas. Que perdoassem os mosquitos. Nenhum dos dois, no entanto, teve coragem de confessar que não queriam também as lagartixas.
Cansados da noite anterior, de muito folguedo na água gelada do laguinho da cascata, caíram na cama e dormiram. Até sentirem alguma coisa andando debaixo das cobertas. Saltaram em um pulo. Luz acesa.
Uma aranha enorme e peluda, vinda do mato, corria sobre as cobertas. Pulou no chão e sumiu.
Passaram boa parte da noite procurando, ansiosos para dormir, meio sonâmbulos. Foi, quando a mulher vislumbrou-a correndo em direção à porta. Chinelo na mão, instinto puro, nem pensou, caiu-lhe em cima. As aranhas enormes e peludas não estão no mesmo nível das baleias.

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domingo, 9 de outubro de 2011

Magister, minister

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Às vésperas de se aposentar teve uma surpresa. Começou a desconfiar que um aluno seu, adolescente inteligente, bom aluno, estava apaixonado por ela.
Sabia bem que havia um abismo ético entre os dois. Mas não podia deixar de sentir vibrar a vaidade e uns sonhos, bem guardadinhos: o final do curso estava chegando e, no ano seguinte, ele não seria mais seu aluno.
Quando pensava nisso, porém, uma grande vexação tomava conta dela, alguma coisa como uma sensação de incesto, talvez. Tinha de abafar correndo os sentimentos e pensar noutra coisa. Como capim teimoso que a gente arranca, mas volta, a ideia renascia e ela se deixava levar. Algumas vezes até se surpreendeu aos beijos com o menino, tudo em sonho, é claro. De novo, pisava em cima. Logo ela sempre tão profissional, zelosa de sua imagem, evitando sempre envolvimentos afetivos com alunos.
Na aula, algumas vezes, ao lembrar daquilo, quase se atrapalhava e já evitava olhar para o lado dele. Era como se toda a turma soubesse. Sentia um alívio quando a aula terminava.
Em outra sala, já, lá vinha ele e pedia para assistir, porque estava em tempo vago. Foi assim que a desconfiança se instalou no coração dela. Pela insistência do jovenzinho, buscando-a por todos os lugares.
Chegou até a surpreendê-lo no corredor, na hora do recreio, olhando para ela, conversando na sala dos professores. Teve medo que alguém percebesse sua atitude.
Já tinha elaborado um discurso, professoral, mas condescendente, se ele acaso se declarasse. E repetia todos os dias, no caminho de ida, como um mantra. Discurso de convencimento do aluno ou de si mesma?
Naquele dia, quando ia andando pelo estacionamento, o rapaz estava parado no meio do caminho. Tremeu da cabeça aos pés. Tentou manter um ar controlado, o que foi quase impossível, mais adolescente do que ele.
- Professora, posso falar com a senhora? – ouviu a madura senhora, sem conseguir articular palavra – Tenho uma profunda admiração pela senhora...
- Meu filho, fico muito envaidecida... - já ia começar a professora a desfiar o que tinha decorado, mas foi interrompida.
- Por favor, eu preciso falar, senão perco a coragem. Tenho tendado falar com a senhora esse tempo todo, mas nunca consigo. Estou apaixonado pela Amanda, sabe, aquela sua aluna da 1305. Sei que a senhora gosta muito dela e acho até que de mim. Será que a senhora pode me apresentar a ela? Será que a senhora pode falar bem de mim para que ela queira me namorar? Olhe, o ano está terminando, logo, logo, a gente não se vê mais e não vou ter mais chance. Não tive coragem de falar com mais ninguém, o pessoal ia rir de mim, mas sei que a senhora é séria, tão amiga...
Uma voz que ela não reconhecia, falou que sim, que ele ficasse tranquilo, ela ia ver isso na próxima aula. Uma boca que não era a sua tentou sorrir, uma mão estranha bateu levemente na face do menino.
E ela saiu andando, trôpega, com o peso dos vinte e tantos anos de magistério e os cinquenta de vida a embaraçar suas pernas.

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domingo, 18 de setembro de 2011

Um novo dia

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Com os olhos ainda fechados – tentativa de não acordar de todo –, quis se espreguiçar longamente... mas, em vez de sentir os músculos se estirando, nada sentiu. Ao mesmo tempo, havia uma sensação vaga, alguma coisa que devia lembrar.
Tornou a tentar alongar os braços e pernas, só para testar, mas ainda agora não conseguia aquela sensação gostosa de todas as manhãs.
Mesmo contra a vontade, começou a arriscar a abrir os olhos. Muito devagar, era o truque que tinha desenvolvido para entrar aos poucos em contato com a realidade. Realidade, porém, era uma palavra que não parecia calhar com a situação.
Tentando abrir os olhos, pálpebras pesadas ainda, não viu a luz da janela. Então era isso, vai ver que não tinha amanhecido, nem madrugada fosse. O cérebro se recusava a engrenar fora do horário.
Se não via, queria ouvir o que se passava em volta, pois havia algum som, havia. Um rumor vago, parecia sussurro. Era um som conhecido, que não conseguia identificar exatamente. Choro? Era choro? Um lamentoso choro de sofrimento, que estranho! Alguém estava chorando.
Um sonho, com certeza. Aquela impossibilidade de se mexer, de abrir os olhos, de ouvir com clareza. Em sonho era sempre assim. Na verdade, começou a sentir um leve sobressalto. Mais do que sonho, pesadelo.
Mas havia um cheiro. Contínuo, envolvente. Entrando pelas narinas. Um perfume, quem sabe. De flor. Meio nauseante.
O sobressalto começou a se transformar em pânico. Havia um fato para ser lembrado. Precisava se lembrar do que tinha de ser lembrado. Era como se houvesse uma urgência naquilo. Talvez fosse a chave para acordar.
De repente, saindo das profundezas do inconsciente, a lembrança veio. Avassaladora. Tremendo da cabeça aos pés, todos os seus sentidos se conectaram. E, retesada cada parte de seu ser, levitou acima de todas as flores em que estava mergulhado, de todas as pessoas taciturnas, que o olhavam, lamentosamente, e partiu pela janela, finalmente, acordado.

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domingo, 4 de setembro de 2011

Amor de carnaval

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Ele se apresentou a mim e disse que seu nome era Pirata da Cara de Pau. Imediatamente, pensei em corrigir para “Perna de pau”, mas ele já estava sentando em minha mesa, comendo de meu tira-gosto e pedindo ao garçom um chope, tendo apresentado a ele meu papel de anotar as bebidas.
Realmente, embora tivesse um olho tampado e uma roupa condizente com o título, tinha duas pernas muito bem-feitas, por sinal, pensei, abafando um sorriso entusiasmado.
Aliás, a tal cara, embora fosse aos poucos sendo confirmada, era morena e muito bonita. E eu me perguntava por que aquele pirata de carnaval tinha resolvido sentar à minha mesa, já coroa eu, com tantas meninotas, em outras mesas, que olhavam, insistentemente para ele e, surpresas, para mim.
Um golpe, era isso? “Essa coroa, solitária, com ar de boba, deve ter dinheiro”, a frase sendo formulada na cabeça dele, mal me viu.
Empurrei para fora do pensamento minha animação com a figura atraente do rapaz e acordei minha avaliação crítica sobre os seres humanos, crítica que trazia, sempre puxada pela coleira, minha matilha de cães ferozes e famintos.
Com um ar blasè e irônico, fui dando corda ao moço, sua conversa alegre e viva, que mandou vir mais tira-gostos – só dos mais caros – e chope. Tudo no meu papel.
Já meio preocupada e para mostrar que eu não era tola, sugeri a ele que abrisse uma comanda só para ele. Jovialmente, ele sorriu, dizendo que não era preciso. Tinha de ir embora mesmo, pois o bloco de carnaval já ia sair. Apertou minha mão com força e franqueza, pegou tudo o que o garçom tinha anotado, foi ao caixa, apontando para minha mesa. Pagou toda a nossa despesa e saiu, não sem mandar um beijo de longe.
Boca aberta, ainda pensei que o carnaval é mesmo uma festa surpreendente.


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sábado, 20 de agosto de 2011

Pé de catarse

Eliane F.C.Lima (registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Vivia dando flores, aquela roseira. Era uma orgia. Dominado o jardim de cores lilases e abelhas pequeninas, que vinham atraídas.
E havia a dona de tudo. De manhã, cortava com uma tesoura as flores velhas, esgotadas, murchas e moribundas. Tinham-lhe ensinado que era assim que se fazia para dar força ao pé.
Também tinha lido que se devia conversar com as plantas. E eram conversas compridas. Contava-lhe, com voz suave, embora, muito de suas mágoas. Mas também falava-lhe como à criança, frustração de mãe de filho nenhum.
Mas o que ela não sabia é que essas palestras matutinas faziam-lhe muito bem, a ela, dona da casa, que, muito fértil, renovava suas forças para o dia a dia.
Para a roseira o dar rosas aos montes era sua natureza, ignorante de tesoura e palavras.

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domingo, 31 de julho de 2011

Cadeia alimentar

Eliane F.C.Lima (registrado no Escritório de Direitos Autorais)

A pequena aranha se arrastava pela parede, caminhar imperceptível para pegar o mosquito. Quando já estava quase em cima, Marta espantou o inseto, que voou.
A aranha ainda permaneceu parada uns segundos, visivelmente frustrada.
Ela não pôde deixar de sorrir do bicho. E pensou que a gente sempre fica ao lado da vítima, mesmo sendo aquele o caminho da natureza para manter os seres vivos.
E não entendeu seu socorro ao mosquito, se, à noite, amaldiçoava todos de sua espécie, quando causavam tanto incômodo a seu descanso na frente da TV.
Lembrou de um filme que viu na televisão em que uma onça, na Amazônia, caça uma anta, que se banha no rio. Não conseguiu deixar de ter muita raiva da primeira e pena da pobre que foi comida.
Na hora do almoço, diante da travessa de coxas de frango, que tinha preparado com todo capricho, tão coradinhas, cheirosas e fumegantes, não se lembrava de mais nada, meio aranha e inteiramente onça.

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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Papéis

Eliane F.C.Lima (registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Quando parou no sinal, janela ligeiramente aberta, um menino de uns dez anos se aproximou, um caco de vidro na mão. Enfiou o braço pela janela e pediu a bolsa.
Ela acionou o botão para fazer subir o vidro, ao mesmo tempo em que jogava o corpo para cima do banco do carona.
Vendo que o braço ia ficar preso, o garoto puxou-o para fora, furioso.
O sinal abriu e ela deu a partida no carro, ainda vendo a cara e os gestos que fazia a criança, da calçada.
Embora assustada, ia roída de ódio. Que pena que não tinha um spray de pimenta ali. Precisava comprar um.
Pena que não houvesse um dispositivo no vidro da janela que fizesse sair uma descarga elétrica, se a gente apertasse um botão.
Tomara que quando ele fosse assaltar outra pessoa, o sinal abrisse e ele fosse atropelado, que ficasse estripado no meio da rua.
Pena que o pilantrinha tivesse pegado o caco de vidro primeiro.
(Convido quem me visita a meus blogues Poema Vivo (link) e Literatura em vida 2 (link). )

domingo, 19 de junho de 2011

Noturno

Eliane F.C.Lima (Registrado no EDA)

Viu a figura flexível, um pouco à frente, na estrada escura e só iluminada pelos faróis. Não houve tempo para nada.
Na primeira oportunidade que encontrou, estacionou o carro, tremendo, o estômago embrulhado.
Depois de respirar fundo e um longo tempo depois, conseguiu voltar a dirigir, devagar, com medo de uma nova surpresa.
Não tinha sido culpa sua. Como ver naquela escuridão aquele animal, que, na sua imprevidência, não tomou cuidado?!
Ainda bem que tinha sido um gato e não um cachorro. Se odiou por esse pensamento. Como conseguia ser discriminador naquele momento? Os dois eram dois bichos que mereciam viver. De novo a vontade de vomitar.
Era um breu aquela estrada. Iria escrever cartas aos jornais reclamando. Aquilo era um perigo. Nada se via ali.
Então como sabia que era um gato? Como sabia que era um bicho, enfim? As luzes dos faróis podiam tê-lo enganado, ilusão de ótica, como se diz. O jogo de claro e sombra criando a impressão de movimento.
Mas sentiu o baque nos pneus. Um pedaço de galho caído daria a mesma sensação, refletiu. Havia chovido e ventado na véspera. Quem sabe até, não foi aquele, exatamente, o momento em que o pedaço caía?
Aos poucos, o coração foi assumindo o ritmo normal. Conseguiu guiar com segurança.
No dia seguinte, assim que acordou, sem examinar o carro, levou a um posto para uma lavagem completa. Podia ter ficado algum resto de madeira podre agarrado aos pneus.
(Aguardo sua visita em Literatura em vida 2 e Poema Vivo.)

domingo, 5 de junho de 2011

Possibilidades

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Ele se sentava num banco de praça do centro da cidade e olhava para um prédio enorme qualquer. E imaginava um corpo caindo dali. E o povo, que a princípio tinha corrido de susto, ia se aproximando para ver bem visto, curiosidade sádica de ser humano.
A mulher se chamaria Teresa, com certeza. Tinha sido traída pelo marido. A nonagésima vez, provavelmente. Nas outras, choro, gritos, no final, perdão. Para tomar fôlego, deixar o coração se recompor até a próxima. Embora passasse uns meses ainda com raiva, pensando numa vingança bem doída para ele.
A cada novo evento, o desejo aumentava, como dinheiro posto na poupança, crescia um pouquinho de nada, nunca, porém, ficava igual ao que era antes.
Dessa vez, Teresa não teria chorado. Havia passado o apartamento em que moravam e que tinha comprado antes do consórcio com o ingrato para o nome da cunhada, viúva de seu irmão, a quem Abreu não suportava e fizera um monte de desaforos, sem motivo algum, e tinha proibido a visita. Aquela não iria perdoar: sairia despejado sem dó nem piedade.
Tinha, também, raspado todo o dinheiro que tinha no banco, conta só dela, e depositado no nome do irmão de sua empregada, anonimamente, já avisada a outra do fato. Segredo entre os três. Abreu não teria como rastrear a quantia. Haveria de pagar, de seu bolso, o enterro dela.
Na imaginação do homem sentado na praça, Abreu chegaria, o safado. Viria com uma colega de trabalho – aquilo era colega, toda solicita com o susto dele e cheia de intimidade, parecia ter planos pela morte de Teresa?
Polícia, repórter, flashes, Abreu fingiria desespero e choro ao reconhecer o corpo da companheira para os policiais. A multidão, em volta, não perderia um lance, alguns não voltariam hoje de novo ao emprego, muitos retornariam no fim do expediente para conferir, o corpo ainda ali, plástico preto, que levantava com o vento, deixando ver a sandália e o pé bem-feito.
Com certeza, Abreu, iludido, contabilizaria logo a suposta herança. De seu banco de praça, o imaginador sorria, imaginando como o safardana, dali a alguns dias, odiaria Teresa ao descobrir que ela tinha premeditado tudo antes do gesto extremo.
Por enquanto, do banco, os olhos do homem seguiriam aquele nada, que, finalmente, iria em direção ao estacionamento além da esquina, já de mão dada com o outro nada, que, muito rebolativa em seus saltos altos, ousaria gargalhar, relaxada. (Vá para a análise deste conto no link).
(Aguardo você em Literatura em vida 2 e Poema Vivo.)

domingo, 22 de maio de 2011

Ampulheta

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Agora é tarde. A essa hora Camila já casou e daqui a pouco embarca para a Europa.

Não adianta se arrepender de não ter aceito o pedido de casamento dela e ter pretendido continuar enrolando.
Não adianta ir ao aeroporto e gritar, aos prantos, que é mesmo louco por ela.
Não adianta, na primeira festa em que se encontrarem, olhar bem fundo aqueles olhos castanhos e jurar, através de seus próprios olhos, que nunca amou nem amará outra mulher.
Não adianta, agora, se prometer que nunca mais a trairá, às escondidas, com aquelas mulheres todas, que o deixavam tão envaidecido e, afinal, teve certeza, não valiam nada para ele.
Não adiantam o cargo de diretor da empresa, que começou a exercer, o apartamento novo para onde se mudou há dois meses, o carro que irá buscar amanhã na concessionária.
Não adianta parar de se embebedar de vinho e acender a luz. O relógio digital, sobre a estante, mostra, implacável, que é muito tarde.

domingo, 8 de maio de 2011

Presença

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Mora comigo uma velha. Primeiro vinha só me visitar, de vez em quando. Logo começou a vir cada vez mais amiúde. Depois acabou ficando.
Não sabia quem era, a princípio. Não conhecia aquele rosto marcado fundamente pelo tempo e pela vida, aquelas mãos levemente rugosas, nunca vira antes. Era com surpresa que a via, minha juventude meio chocada: aqueles olhos já enrugando, bem como o pescoço, a pele macilenta dos braços surgiam como uma presença não convidada.
Ignorei-a longo tempo, fingi não perceber-lhe a violação sutil, mas persistente.
Hoje ela já anda por dentro de casa como dona, completada a invasão.
Meio consolo, meio susto, vejo que esse andar fica cada dia menos atrevido, seus passos já se arrastando com um som de fantasma.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Linha do tempo

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Não era apego ao material. Pelo contrário. É que cada objeto tinha impresso em si uma lembrança, uma parte do passado. Como uma tatuagem. Alguns, uma cicatriz. Jogar fora era arrancar um pedaço da vida.
Um dia decidia que ia se livrar de alguns. Comprar coisas novas, redecorar a sala ou o quarto ou o escritório. Mas levava muito tempo com um deles na mão: e vinham os trinta anos, os amigos, uma festa de fim de ano, quando tinha dançado com Margarida, rolaram até uns beijos. Como não sentir saudade dela? Ingratidão jogar fora aquilo... e Margarida junto. Não.
Depois vinha um quadro pequeno na parede. Fontenele, o grande Fontenele, contador de histórias incríveis. Quando vinha à sua casa, olhava para a paisagem e lembrava de um monte de acontecimentos. Terminavam rindo muito e quase bêbados de tanto vinho. Sem solução: Fontenele ficava.
E a caixinha de madeira de clipes, rapaz, como era velha! Do tempo de colégio. Embevecido, ia sentando na cadeira do escritório, sem sentir, olhos fixos no nada, boca aberta, sorrindo para Janu – o velho Januário, que saudade! –, para Cidinha, tão magrinha e morena, aquelas tranças, mas era uma ferinha, não mexessem com ela, louca para namorar o Janu, que só tinha olhos para a Verusca, toda gostosona, uma cinturinha de vespa, umas cadeiras enlouquecedoras, todo mundo, em resumo, estava a fim da Verusca, não só ele, ora bolas! Metida que só ela, a menina só falava em um tal de Luís Felipe, que namorava. E todo mundo tinha ódio do Luís Felipe, que ninguém conhecia. Agora se recordava com saudade até dele.
A turma toda guardada dentro da caixinha, um beijo carinhoso nela a recolocava no mesmo lugar.
Quando os olhos batiam, então, no jarro de madeira envernizada ficavam logo marejados de lágrimas. Com ele, estilhaçando o vidro da janela, Tânia tinha posto ponto final no casamento. Tinha feito tudo para fazer as pazes com ela, recompor o relacionamento, mas era tarde. A mulher havia achado logo outro interessadíssimo, que ela era um mulherão de não se jogar fora, ele é que tinha sido um idiota de ficar flertando com aquela tal a noite toda no aniversário de casamento do Álvaro. Estava farto de saber como sua mulher era ciumenta.
Quinze anos se passaram e Tânia nunca mais o perdoou. Também foi morar na Espanha com o novo marido.
O jarro voltou para o alto da estante, testemunha muda de sua tolice e sofrimento. E de que, em última análise, todo mundo é um pouco masoquista.


sábado, 29 de janeiro de 2011

Amoralidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - EDA - RJ)

Há muito tempo não tem mais contidos gestos, como relancear de olhos ou olhar de soslaio. Seus gestos, agora, são todos desabridos. Mora sozinha.
Vai perdendo os enraizados tratos sociais. Pode tudo naquela sua casa. São só seus os bocejos uivados, o comer e raspar o prato, delícia de não deixar nada para trás, o andar nua pela casa.
E, fones no ouvido, cantar a música esganiçada, caras e bocas, a liberdade de ser quem quiser e ser quem é. Reboleira pela cozinha, colher de pau na mão, de matar de rir quem olha, se houvesse quem olhasse. Nenhum pudor nem vexame.
Pode a meia furada, ralinha e confortável, o pulôver puído. Comer a manga madura e limpar a casca, fios amarelos presos no dente, que tira, dedo na boca, escancarada. Nada, nada é proibido.
Obrigação só a comida, que uma vivente tem de comer ou de limpar a casa, se quiser. Lavar a roupa, pode deixar para amanhã, ou depois de amanhã. Um dia... de improviso.
Pode deitar o dia inteiro, de pernas para o ar e nem fazer a cama de manhã. Se faz, é para achar mais bonito o quarto, agradar a si.
Espalhar os papéis na mesa, no sofá e escrever seus versos, de manhã, de tarde, de noite, no quarto, na sala.
Agora todo desejo é satisfeito, desde o copo de vinho fino – permitido estalar a língua – até, no banheiro, corpo relaxado, porta aberta, e todas as caras feias, ou alegres. Não há mais feição inconveniente, inoportuna, ridícula.
Nenhuma obrigação de fazer a cara discreta, da máscara antiga, posta com o pé na rua. As caras, só as suas, como fossem, todas boas e preferidas.
Não há ninguém para “bom-dia”, engolido seu mau humor e vontade de dizer “que se dane, que eu não quero lhe dar bom-dia”. Agora os dias nascem só para se viver.

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domingo, 16 de janeiro de 2011

Destino

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Às vezes, quando volta da escola, pega o ônibus mais barato. Só quando está com paciência. Criança, a barriga gritando por comida. O veículo vai por lugares não imaginados. Alguns muito bonitos: fazendas, gado, aves pernaltas e brancas junto a eles, casas grandes entrevistas no amontoado de árvores.
Mas há casinhas pobres, sofás rasgados nas varandas. Para quem? Lá dormem gatos e cachorros da casa e até vira-latas da rua.
Uma sempre lhe atrai o olhar, quando passa. Desde a primeira vez, quando nunca vira. Pois mesmo não tendo visto, sabia tudo. Sabia até o que havia por dentro. Um quadro de um casal, muito antigo, coisa do final do século XIX, preto e branco, na parede, a mulher abotoada até o pescoço, o homem, um bigode farto. Outro sofá bem grande. Verde. Um móvel na horizontal, dos que não se encontram mais. Uma cristaleira no canto, só achada, hoje, em antiquário. Um quarto só, com a porta dando para a sala.
Uma cortina estampada com motivos também verdes separa os cômodos da cozinha pequena, atrás, dando para um avarandado com telheiro de zinco. Ao fundo, uma hortinha.
Um sentimento confuso enche o peito. É atraído, mas tem medo. Uma mulher mexe nas hortaliças e ele lembra seu nome: Elvira. É fornida de carne e morena, os cabelos presos para cima, relaxadamente. Mas fica linda. Quando abaixa, os seios redondos brotam do decote, vêm saudar as couves, os tomates, as salsinhas.
Parece que vai sentir saudade, porém um sentimento de horror e ódio, mais forte, atropela o outro.
Quer tirar a casa e Elvira da cabeça. Ela, porém, está beijando um rapazote, um buço despontando, atrás de uma mangueira enorme, no fundo de um terreno baldio.
Aos poucos se deitam no chão. Ela levanta a saia comprida do vestido vagabundo, para que o meninote se decida rápido. E tão enlouquecidos se tornam que não veem um vulto chegar, facão de cortar mato na mão.
Com a mão no peito, ele abre os olhos e vira o rosto para a janela. Quer se concentrar na paisagem, que, recentemente, começou a conhecer. O coração, entretanto, ainda sacode violentamente.
Quando o ônibus para, muito tempo depois, ainda não está sereno. Mochila às costas, cadernos e livros dentro, salta meio sonâmbulo ainda, medo de novamente encontrar Elvira.

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Estou ainda em:
1.
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2
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4.
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domingo, 2 de janeiro de 2011

Parábola II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Nasci rúcula. Uma sementinha foi semeada, com todo cuidado, junto de muitas outras, em um quadrado bem grande. Em outros quadrados, mais adiante, havia couves, hortelãs, alfaces, legumes e frutas. Uma variedade imensa.
Meu criador, às vezes, brincadeira de adulto, fazia enxertos, e criava outras espécies diferentes. E parecia muito orgulhoso com aquilo. Eu vi com estes olhos de rúcula. Pois nasci rúcula.
Fui regada todas as manhãs, bem cedo. Ele me pôs mais terra, quando já taludinha, meu caule parecia meio inseguro. Vinha sempre nos espiar, zeloso. E eu e todos os que estavam ali éramos muito agradecidos.
Mas muitas coisas difíceis aconteceram também: houve dias de sol inclemente, em que minhas folhas ficavam murchas e quase secavam. E dias de vento impiedoso, em que eu quase me desfolhava. E dias de uma chuva que caía sem condescendência e eu pensava que ia me afogar. Nessas ocasiões, eu quase me revoltava e me sentia arrependida de ter brotado, embora nada tivesse dependido de mim.
Mas aquele bondoso ser, que me cultivava com empenhos de pai, sempre vinha, muito preocupado conosco, todas as hortaliças acreditavam, com seus coraçõezinhos mortos de medo, mas reconhecidos. E nos cobria com imensos toldos, já preparados para a ocasião.
Eu reparava, no entanto, com esse entendimento meio curto e verde de rúcula, que, de vez em quando, uma amiguinha minha sumia. Fiquei muito triste, quando, ao acordar, a melhor delas, a que eu mais gostava, e para a qual tinha preparado meu bom-dia, não estava ali. Isso era um grande mistério.
Também acontecia isso, com as galinhas, seres que andavam de um lado para o outro, dentro de um quadrado fechado, e eram muito barulhentas. Sempre depois que elas faziam um berreiro enorme, campeonato de quem dava gritos mais altos. Como era longe, eu nunca sabia o que estava realmente acontecendo.
Hoje sei: estou em cima de uma pedra branca e vejo pedaços de tomates e pedaços de um monte de outros, que ainda ontem tremulavam sob a brisa lá fora, em seus quadrados, agora, dentro de um pequeno objeto de vidro. Acho que germinamos e cacarejamos todos para gáudio de nosso hortelão. Porém sou só uma pobre e indefesa rúcula, com seu julgamento tão parco. Fechando os olhos aflitos, ainda confio nele e imagino que ele sabe o que faz.

(Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)


"parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.] S. f. 1. Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior... " (Dicionário Aurélio - Século XXI - versão digital)

"(pa.rá.bo.la)
sf.
1 Narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior, encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos." (Aulete - dicionário digital)



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