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sábado, 26 de novembro de 2011

Do outro lado

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Morreu. E foi direto para o inferno. Porque tinha feito em vida tudo que prejudicava o próximo. Sem nenhuma preocupação sobre isso. Seu único objetivo era atender a seus interesses pessoais, fossem eles desonestos ou não, ilegais ou não, desumanos ou não. Armou muitas trapaças, sempre com aquela finalidade. Morreu.
E viu-se logo diante do diabo ou um seu representante, não sabia bem. Viu que o tal correspondia, na aparência, exatamente, ao que todos imaginavam. Embora ainda um pouco confuso pela mudança de estado, pensou, velhaco ainda, que aquilo podia ser para impressionar o recém-chegado. Mas não pôde evitar que o medo se apossasse de si.
Seu interlocutor, com uma voz meio rouca, mandou que ele contasse tudo que tinha feito em vida. E que pensasse bem, que não mentisse, pois, se algum mal tinha feito antes, no mundo dos vivos, a mentira, agora, para ele, diabo, seria uma ofensa grave. E sorriu, mostrando um calhamaço de papéis, acrescentando que sua vida estava toda ali, nos mínimos detalhes.
O homem já ia argumentar que, se o outro sabia de tudo, não fazia sentido, então pedir a ele para contar, mas calou-se a tempo, vendo que não estava em condições de fazer desaforos.
E contou. Foi desfiando minuciosamente todas os seus ardis para garantir seu passado bem-estar. A princípio com um fio de voz, a garganta entalada, respirando com dificuldade, todo o corpo tremendo, o coração quase parando. Não de remorso, só de medo.
Reparou, porém, que seu interlocutor, que, no começo estava escarrapachado na enorme cadeira, foi levantando o corpo, chegando-se para a frente, para a ponta do assento, como se não quisesse perder um lance que fosse do relato. E seus olhos brilhavam vivamente, os olhos grudados na boca do falante, adivinhando-lhe as palavras futuras, embebendo-se de suas feições. Todo ele era a própria encarnação do gozo.
Para testar – uma das estratégias do ex-vivo, em vida, era conhecer o terreno onde pisava –, ele contou certos pormenores mesquinhos que poderia ter evitado. O outro sorriu, contente, deliciado. A palavra que veio à mente do que narrava foi “cúmplice”.
No fim, ainda sorrindo, o demo deu um tapinha camarada na perna do homem. Esse, entendendo que aquele era o lugar perfeito para o perdão de seus pecados, ouviu do capeta, companheiro, que andava precisado de um auxiliar, levando-o, fraternal, às suas novas funções.

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domingo, 6 de novembro de 2011

Quase uma onda verde

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Eram muito preocupados com o meio ambiente. Filiados ao Greenpeace, assinavam todos os manifestos a favor do futuro do planeta. E de proteção às baleias, bebês-focas, peixe-boi, todos os animais em extinção, enfim.
E tome de sacola e papel recicláveis, de lixo com separação seletiva, óleo queimado recolhido em garrafa para ser reaproveitado. Não havia um comportamento ecológico correto que o casal, tomando conhecimento, não passasse a ter, religiosamente.
Compraram, um dia, um terreno na serra, muito verde, clima especial, ar puro, uma cascatinha ao fundo, uma visão magnífica do lugar, no alto da colina. Duas árvores frondosas, cheias de ninhos de pássaros. Exigiram do arquiteto uma planta que deixasse as duas em paz e garantisse a sobrevivência de seus moradores naturais. As aves estavam no mesmo nível que as baleias, não vê?
Quiseram teto que captasse a energia solar, reaproveitamento da água do banho para a privada, caixa d'água que recolhesse a água da chuva para molhar plantas, lavar varandas.
Quando a obra ia começar, o terreno teve de ser limpo. Lá se foram todos os viventes daquele mato enorme. Correram cobra, lagarto, sapo. Apesar de terem ficado preocupados, ainda havia muito mato em volta para eles se abrigarem, o marido ponderou.
Casa pronta, foram passar as férias lá pela primeira vez. À noite, céu tão estrelado que parecia com risco de cair na cabeça. Quando o homem se sentou na varanda, o que lhe caiu em cima foi uma lagartixa. Deu um pulo, dando um monte de safanões e não pôde segurar um “Que bicho nojento!”. A mulher, ao lado, caiu na gargalhada, mas ficou de olho vivo em duas outras que passeavam calmamente. Todas estavam ali, desde que a obra tinha começado, para comer os mosquitos, que vinham aos montes, fartar-se com o sangue dos operários.
Só então os dois, que já tinham começado a se estapear por causa deles, notaram que a casa, janelas todas abertas, estava invadida por uma nuvem.
Passaram a noite acordados, porque não tinham trazido aqueles aparelhinhos elétricos de inseticida, imagine, logo eles, tão conscientes. Nem repelente.
Dia seguinte, foram a um supermercado no centro e, relutantes, tiveram de comprar.
Antes de escurecer, tristonhos, foram fechando as janelas. Que perdoassem os mosquitos. Nenhum dos dois, no entanto, teve coragem de confessar que não queriam também as lagartixas.
Cansados da noite anterior, de muito folguedo na água gelada do laguinho da cascata, caíram na cama e dormiram. Até sentirem alguma coisa andando debaixo das cobertas. Saltaram em um pulo. Luz acesa.
Uma aranha enorme e peluda, vinda do mato, corria sobre as cobertas. Pulou no chão e sumiu.
Passaram boa parte da noite procurando, ansiosos para dormir, meio sonâmbulos. Foi, quando a mulher vislumbrou-a correndo em direção à porta. Chinelo na mão, instinto puro, nem pensou, caiu-lhe em cima. As aranhas enormes e peludas não estão no mesmo nível das baleias.

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domingo, 9 de outubro de 2011

Magister, minister

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Às vésperas de se aposentar teve uma surpresa. Começou a desconfiar que um aluno seu, adolescente inteligente, bom aluno, estava apaixonado por ela.
Sabia bem que havia um abismo ético entre os dois. Mas não podia deixar de sentir vibrar a vaidade e uns sonhos, bem guardadinhos: o final do curso estava chegando e, no ano seguinte, ele não seria mais seu aluno.
Quando pensava nisso, porém, uma grande vexação tomava conta dela, alguma coisa como uma sensação de incesto, talvez. Tinha de abafar correndo os sentimentos e pensar noutra coisa. Como capim teimoso que a gente arranca, mas volta, a ideia renascia e ela se deixava levar. Algumas vezes até se surpreendeu aos beijos com o menino, tudo em sonho, é claro. De novo, pisava em cima. Logo ela sempre tão profissional, zelosa de sua imagem, evitando sempre envolvimentos afetivos com alunos.
Na aula, algumas vezes, ao lembrar daquilo, quase se atrapalhava e já evitava olhar para o lado dele. Era como se toda a turma soubesse. Sentia um alívio quando a aula terminava.
Em outra sala, já, lá vinha ele e pedia para assistir, porque estava em tempo vago. Foi assim que a desconfiança se instalou no coração dela. Pela insistência do jovenzinho, buscando-a por todos os lugares.
Chegou até a surpreendê-lo no corredor, na hora do recreio, olhando para ela, conversando na sala dos professores. Teve medo que alguém percebesse sua atitude.
Já tinha elaborado um discurso, professoral, mas condescendente, se ele acaso se declarasse. E repetia todos os dias, no caminho de ida, como um mantra. Discurso de convencimento do aluno ou de si mesma?
Naquele dia, quando ia andando pelo estacionamento, o rapaz estava parado no meio do caminho. Tremeu da cabeça aos pés. Tentou manter um ar controlado, o que foi quase impossível, mais adolescente do que ele.
- Professora, posso falar com a senhora? – ouviu a madura senhora, sem conseguir articular palavra – Tenho uma profunda admiração pela senhora...
- Meu filho, fico muito envaidecida... - já ia começar a professora a desfiar o que tinha decorado, mas foi interrompida.
- Por favor, eu preciso falar, senão perco a coragem. Tenho tendado falar com a senhora esse tempo todo, mas nunca consigo. Estou apaixonado pela Amanda, sabe, aquela sua aluna da 1305. Sei que a senhora gosta muito dela e acho até que de mim. Será que a senhora pode me apresentar a ela? Será que a senhora pode falar bem de mim para que ela queira me namorar? Olhe, o ano está terminando, logo, logo, a gente não se vê mais e não vou ter mais chance. Não tive coragem de falar com mais ninguém, o pessoal ia rir de mim, mas sei que a senhora é séria, tão amiga...
Uma voz que ela não reconhecia, falou que sim, que ele ficasse tranquilo, ela ia ver isso na próxima aula. Uma boca que não era a sua tentou sorrir, uma mão estranha bateu levemente na face do menino.
E ela saiu andando, trôpega, com o peso dos vinte e tantos anos de magistério e os cinquenta de vida a embaraçar suas pernas.

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domingo, 18 de setembro de 2011

Um novo dia

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Com os olhos ainda fechados – tentativa de não acordar de todo –, quis se espreguiçar longamente... mas, em vez de sentir os músculos se estirando, nada sentiu. Ao mesmo tempo, havia uma sensação vaga, alguma coisa que devia lembrar.
Tornou a tentar alongar os braços e pernas, só para testar, mas ainda agora não conseguia aquela sensação gostosa de todas as manhãs.
Mesmo contra a vontade, começou a arriscar a abrir os olhos. Muito devagar, era o truque que tinha desenvolvido para entrar aos poucos em contato com a realidade. Realidade, porém, era uma palavra que não parecia calhar com a situação.
Tentando abrir os olhos, pálpebras pesadas ainda, não viu a luz da janela. Então era isso, vai ver que não tinha amanhecido, nem madrugada fosse. O cérebro se recusava a engrenar fora do horário.
Se não via, queria ouvir o que se passava em volta, pois havia algum som, havia. Um rumor vago, parecia sussurro. Era um som conhecido, que não conseguia identificar exatamente. Choro? Era choro? Um lamentoso choro de sofrimento, que estranho! Alguém estava chorando.
Um sonho, com certeza. Aquela impossibilidade de se mexer, de abrir os olhos, de ouvir com clareza. Em sonho era sempre assim. Na verdade, começou a sentir um leve sobressalto. Mais do que sonho, pesadelo.
Mas havia um cheiro. Contínuo, envolvente. Entrando pelas narinas. Um perfume, quem sabe. De flor. Meio nauseante.
O sobressalto começou a se transformar em pânico. Havia um fato para ser lembrado. Precisava se lembrar do que tinha de ser lembrado. Era como se houvesse uma urgência naquilo. Talvez fosse a chave para acordar.
De repente, saindo das profundezas do inconsciente, a lembrança veio. Avassaladora. Tremendo da cabeça aos pés, todos os seus sentidos se conectaram. E, retesada cada parte de seu ser, levitou acima de todas as flores em que estava mergulhado, de todas as pessoas taciturnas, que o olhavam, lamentosamente, e partiu pela janela, finalmente, acordado.

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domingo, 4 de setembro de 2011

Amor de carnaval

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Ele se apresentou a mim e disse que seu nome era Pirata da Cara de Pau. Imediatamente, pensei em corrigir para “Perna de pau”, mas ele já estava sentando em minha mesa, comendo de meu tira-gosto e pedindo ao garçom um chope, tendo apresentado a ele meu papel de anotar as bebidas.
Realmente, embora tivesse um olho tampado e uma roupa condizente com o título, tinha duas pernas muito bem-feitas, por sinal, pensei, abafando um sorriso entusiasmado.
Aliás, a tal cara, embora fosse aos poucos sendo confirmada, era morena e muito bonita. E eu me perguntava por que aquele pirata de carnaval tinha resolvido sentar à minha mesa, já coroa eu, com tantas meninotas, em outras mesas, que olhavam, insistentemente para ele e, surpresas, para mim.
Um golpe, era isso? “Essa coroa, solitária, com ar de boba, deve ter dinheiro”, a frase sendo formulada na cabeça dele, mal me viu.
Empurrei para fora do pensamento minha animação com a figura atraente do rapaz e acordei minha avaliação crítica sobre os seres humanos, crítica que trazia, sempre puxada pela coleira, minha matilha de cães ferozes e famintos.
Com um ar blasè e irônico, fui dando corda ao moço, sua conversa alegre e viva, que mandou vir mais tira-gostos – só dos mais caros – e chope. Tudo no meu papel.
Já meio preocupada e para mostrar que eu não era tola, sugeri a ele que abrisse uma comanda só para ele. Jovialmente, ele sorriu, dizendo que não era preciso. Tinha de ir embora mesmo, pois o bloco de carnaval já ia sair. Apertou minha mão com força e franqueza, pegou tudo o que o garçom tinha anotado, foi ao caixa, apontando para minha mesa. Pagou toda a nossa despesa e saiu, não sem mandar um beijo de longe.
Boca aberta, ainda pensei que o carnaval é mesmo uma festa surpreendente.


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sábado, 20 de agosto de 2011

Pé de catarse

Eliane F.C.Lima (registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Vivia dando flores, aquela roseira. Era uma orgia. Dominado o jardim de cores lilases e abelhas pequeninas, que vinham atraídas.
E havia a dona de tudo. De manhã, cortava com uma tesoura as flores velhas, esgotadas, murchas e moribundas. Tinham-lhe ensinado que era assim que se fazia para dar força ao pé.
Também tinha lido que se devia conversar com as plantas. E eram conversas compridas. Contava-lhe, com voz suave, embora, muito de suas mágoas. Mas também falava-lhe como à criança, frustração de mãe de filho nenhum.
Mas o que ela não sabia é que essas palestras matutinas faziam-lhe muito bem, a ela, dona da casa, que, muito fértil, renovava suas forças para o dia a dia.
Para a roseira o dar rosas aos montes era sua natureza, ignorante de tesoura e palavras.

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domingo, 31 de julho de 2011

Cadeia alimentar

Eliane F.C.Lima (registrado no Escritório de Direitos Autorais)

A pequena aranha se arrastava pela parede, caminhar imperceptível para pegar o mosquito. Quando já estava quase em cima, Marta espantou o inseto, que voou.
A aranha ainda permaneceu parada uns segundos, visivelmente frustrada.
Ela não pôde deixar de sorrir do bicho. E pensou que a gente sempre fica ao lado da vítima, mesmo sendo aquele o caminho da natureza para manter os seres vivos.
E não entendeu seu socorro ao mosquito, se, à noite, amaldiçoava todos de sua espécie, quando causavam tanto incômodo a seu descanso na frente da TV.
Lembrou de um filme que viu na televisão em que uma onça, na Amazônia, caça uma anta, que se banha no rio. Não conseguiu deixar de ter muita raiva da primeira e pena da pobre que foi comida.
Na hora do almoço, diante da travessa de coxas de frango, que tinha preparado com todo capricho, tão coradinhas, cheirosas e fumegantes, não se lembrava de mais nada, meio aranha e inteiramente onça.

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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Papéis

Eliane F.C.Lima (registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Quando parou no sinal, janela ligeiramente aberta, um menino de uns dez anos se aproximou, um caco de vidro na mão. Enfiou o braço pela janela e pediu a bolsa.
Ela acionou o botão para fazer subir o vidro, ao mesmo tempo em que jogava o corpo para cima do banco do carona.
Vendo que o braço ia ficar preso, o garoto puxou-o para fora, furioso.
O sinal abriu e ela deu a partida no carro, ainda vendo a cara e os gestos que fazia a criança, da calçada.
Embora assustada, ia roída de ódio. Que pena que não tinha um spray de pimenta ali. Precisava comprar um.
Pena que não houvesse um dispositivo no vidro da janela que fizesse sair uma descarga elétrica, se a gente apertasse um botão.
Tomara que quando ele fosse assaltar outra pessoa, o sinal abrisse e ele fosse atropelado, que ficasse estripado no meio da rua.
Pena que o pilantrinha tivesse pegado o caco de vidro primeiro.
(Convido quem me visita a meus blogues Poema Vivo (link) e Literatura em vida 2 (link). )

domingo, 19 de junho de 2011

Noturno

Eliane F.C.Lima (Registrado no EDA)

Viu a figura flexível, um pouco à frente, na estrada escura e só iluminada pelos faróis. Não houve tempo para nada.
Na primeira oportunidade que encontrou, estacionou o carro, tremendo, o estômago embrulhado.
Depois de respirar fundo e um longo tempo depois, conseguiu voltar a dirigir, devagar, com medo de uma nova surpresa.
Não tinha sido culpa sua. Como ver naquela escuridão aquele animal, que, na sua imprevidência, não tomou cuidado?!
Ainda bem que tinha sido um gato e não um cachorro. Se odiou por esse pensamento. Como conseguia ser discriminador naquele momento? Os dois eram dois bichos que mereciam viver. De novo a vontade de vomitar.
Era um breu aquela estrada. Iria escrever cartas aos jornais reclamando. Aquilo era um perigo. Nada se via ali.
Então como sabia que era um gato? Como sabia que era um bicho, enfim? As luzes dos faróis podiam tê-lo enganado, ilusão de ótica, como se diz. O jogo de claro e sombra criando a impressão de movimento.
Mas sentiu o baque nos pneus. Um pedaço de galho caído daria a mesma sensação, refletiu. Havia chovido e ventado na véspera. Quem sabe até, não foi aquele, exatamente, o momento em que o pedaço caía?
Aos poucos, o coração foi assumindo o ritmo normal. Conseguiu guiar com segurança.
No dia seguinte, assim que acordou, sem examinar o carro, levou a um posto para uma lavagem completa. Podia ter ficado algum resto de madeira podre agarrado aos pneus.
(Aguardo sua visita em Literatura em vida 2 e Poema Vivo.)

domingo, 5 de junho de 2011

Possibilidades

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Ele se sentava num banco de praça do centro da cidade e olhava para um prédio enorme qualquer. E imaginava um corpo caindo dali. E o povo, que a princípio tinha corrido de susto, ia se aproximando para ver bem visto, curiosidade sádica de ser humano.
A mulher se chamaria Teresa, com certeza. Tinha sido traída pelo marido. A nonagésima vez, provavelmente. Nas outras, choro, gritos, no final, perdão. Para tomar fôlego, deixar o coração se recompor até a próxima. Embora passasse uns meses ainda com raiva, pensando numa vingança bem doída para ele.
A cada novo evento, o desejo aumentava, como dinheiro posto na poupança, crescia um pouquinho de nada, nunca, porém, ficava igual ao que era antes.
Dessa vez, Teresa não teria chorado. Havia passado o apartamento em que moravam e que tinha comprado antes do consórcio com o ingrato para o nome da cunhada, viúva de seu irmão, a quem Abreu não suportava e fizera um monte de desaforos, sem motivo algum, e tinha proibido a visita. Aquela não iria perdoar: sairia despejado sem dó nem piedade.
Tinha, também, raspado todo o dinheiro que tinha no banco, conta só dela, e depositado no nome do irmão de sua empregada, anonimamente, já avisada a outra do fato. Segredo entre os três. Abreu não teria como rastrear a quantia. Haveria de pagar, de seu bolso, o enterro dela.
Na imaginação do homem sentado na praça, Abreu chegaria, o safado. Viria com uma colega de trabalho – aquilo era colega, toda solicita com o susto dele e cheia de intimidade, parecia ter planos pela morte de Teresa?
Polícia, repórter, flashes, Abreu fingiria desespero e choro ao reconhecer o corpo da companheira para os policiais. A multidão, em volta, não perderia um lance, alguns não voltariam hoje de novo ao emprego, muitos retornariam no fim do expediente para conferir, o corpo ainda ali, plástico preto, que levantava com o vento, deixando ver a sandália e o pé bem-feito.
Com certeza, Abreu, iludido, contabilizaria logo a suposta herança. De seu banco de praça, o imaginador sorria, imaginando como o safardana, dali a alguns dias, odiaria Teresa ao descobrir que ela tinha premeditado tudo antes do gesto extremo.
Por enquanto, do banco, os olhos do homem seguiriam aquele nada, que, finalmente, iria em direção ao estacionamento além da esquina, já de mão dada com o outro nada, que, muito rebolativa em seus saltos altos, ousaria gargalhar, relaxada. (Vá para a análise deste conto no link).
(Aguardo você em Literatura em vida 2 e Poema Vivo.)

domingo, 22 de maio de 2011

Ampulheta

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Agora é tarde. A essa hora Camila já casou e daqui a pouco embarca para a Europa.

Não adianta se arrepender de não ter aceito o pedido de casamento dela e ter pretendido continuar enrolando.
Não adianta ir ao aeroporto e gritar, aos prantos, que é mesmo louco por ela.
Não adianta, na primeira festa em que se encontrarem, olhar bem fundo aqueles olhos castanhos e jurar, através de seus próprios olhos, que nunca amou nem amará outra mulher.
Não adianta, agora, se prometer que nunca mais a trairá, às escondidas, com aquelas mulheres todas, que o deixavam tão envaidecido e, afinal, teve certeza, não valiam nada para ele.
Não adiantam o cargo de diretor da empresa, que começou a exercer, o apartamento novo para onde se mudou há dois meses, o carro que irá buscar amanhã na concessionária.
Não adianta parar de se embebedar de vinho e acender a luz. O relógio digital, sobre a estante, mostra, implacável, que é muito tarde.

domingo, 8 de maio de 2011

Presença

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Mora comigo uma velha. Primeiro vinha só me visitar, de vez em quando. Logo começou a vir cada vez mais amiúde. Depois acabou ficando.
Não sabia quem era, a princípio. Não conhecia aquele rosto marcado fundamente pelo tempo e pela vida, aquelas mãos levemente rugosas, nunca vira antes. Era com surpresa que a via, minha juventude meio chocada: aqueles olhos já enrugando, bem como o pescoço, a pele macilenta dos braços surgiam como uma presença não convidada.
Ignorei-a longo tempo, fingi não perceber-lhe a violação sutil, mas persistente.
Hoje ela já anda por dentro de casa como dona, completada a invasão.
Meio consolo, meio susto, vejo que esse andar fica cada dia menos atrevido, seus passos já se arrastando com um som de fantasma.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Linha do tempo

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Não era apego ao material. Pelo contrário. É que cada objeto tinha impresso em si uma lembrança, uma parte do passado. Como uma tatuagem. Alguns, uma cicatriz. Jogar fora era arrancar um pedaço da vida.
Um dia decidia que ia se livrar de alguns. Comprar coisas novas, redecorar a sala ou o quarto ou o escritório. Mas levava muito tempo com um deles na mão: e vinham os trinta anos, os amigos, uma festa de fim de ano, quando tinha dançado com Margarida, rolaram até uns beijos. Como não sentir saudade dela? Ingratidão jogar fora aquilo... e Margarida junto. Não.
Depois vinha um quadro pequeno na parede. Fontenele, o grande Fontenele, contador de histórias incríveis. Quando vinha à sua casa, olhava para a paisagem e lembrava de um monte de acontecimentos. Terminavam rindo muito e quase bêbados de tanto vinho. Sem solução: Fontenele ficava.
E a caixinha de madeira de clipes, rapaz, como era velha! Do tempo de colégio. Embevecido, ia sentando na cadeira do escritório, sem sentir, olhos fixos no nada, boca aberta, sorrindo para Janu – o velho Januário, que saudade! –, para Cidinha, tão magrinha e morena, aquelas tranças, mas era uma ferinha, não mexessem com ela, louca para namorar o Janu, que só tinha olhos para a Verusca, toda gostosona, uma cinturinha de vespa, umas cadeiras enlouquecedoras, todo mundo, em resumo, estava a fim da Verusca, não só ele, ora bolas! Metida que só ela, a menina só falava em um tal de Luís Felipe, que namorava. E todo mundo tinha ódio do Luís Felipe, que ninguém conhecia. Agora se recordava com saudade até dele.
A turma toda guardada dentro da caixinha, um beijo carinhoso nela a recolocava no mesmo lugar.
Quando os olhos batiam, então, no jarro de madeira envernizada ficavam logo marejados de lágrimas. Com ele, estilhaçando o vidro da janela, Tânia tinha posto ponto final no casamento. Tinha feito tudo para fazer as pazes com ela, recompor o relacionamento, mas era tarde. A mulher havia achado logo outro interessadíssimo, que ela era um mulherão de não se jogar fora, ele é que tinha sido um idiota de ficar flertando com aquela tal a noite toda no aniversário de casamento do Álvaro. Estava farto de saber como sua mulher era ciumenta.
Quinze anos se passaram e Tânia nunca mais o perdoou. Também foi morar na Espanha com o novo marido.
O jarro voltou para o alto da estante, testemunha muda de sua tolice e sofrimento. E de que, em última análise, todo mundo é um pouco masoquista.


sábado, 29 de janeiro de 2011

Amoralidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - EDA - RJ)

Há muito tempo não tem mais contidos gestos, como relancear de olhos ou olhar de soslaio. Seus gestos, agora, são todos desabridos. Mora sozinha.
Vai perdendo os enraizados tratos sociais. Pode tudo naquela sua casa. São só seus os bocejos uivados, o comer e raspar o prato, delícia de não deixar nada para trás, o andar nua pela casa.
E, fones no ouvido, cantar a música esganiçada, caras e bocas, a liberdade de ser quem quiser e ser quem é. Reboleira pela cozinha, colher de pau na mão, de matar de rir quem olha, se houvesse quem olhasse. Nenhum pudor nem vexame.
Pode a meia furada, ralinha e confortável, o pulôver puído. Comer a manga madura e limpar a casca, fios amarelos presos no dente, que tira, dedo na boca, escancarada. Nada, nada é proibido.
Obrigação só a comida, que uma vivente tem de comer ou de limpar a casa, se quiser. Lavar a roupa, pode deixar para amanhã, ou depois de amanhã. Um dia... de improviso.
Pode deitar o dia inteiro, de pernas para o ar e nem fazer a cama de manhã. Se faz, é para achar mais bonito o quarto, agradar a si.
Espalhar os papéis na mesa, no sofá e escrever seus versos, de manhã, de tarde, de noite, no quarto, na sala.
Agora todo desejo é satisfeito, desde o copo de vinho fino – permitido estalar a língua – até, no banheiro, corpo relaxado, porta aberta, e todas as caras feias, ou alegres. Não há mais feição inconveniente, inoportuna, ridícula.
Nenhuma obrigação de fazer a cara discreta, da máscara antiga, posta com o pé na rua. As caras, só as suas, como fossem, todas boas e preferidas.
Não há ninguém para “bom-dia”, engolido seu mau humor e vontade de dizer “que se dane, que eu não quero lhe dar bom-dia”. Agora os dias nascem só para se viver.

Convido o visitante deste blogue a ir a Poema Vivo (por aqui), onde há um novo conto meu e a Literatura em vida 2 (o caminho é esse).


domingo, 16 de janeiro de 2011

Destino

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Às vezes, quando volta da escola, pega o ônibus mais barato. Só quando está com paciência. Criança, a barriga gritando por comida. O veículo vai por lugares não imaginados. Alguns muito bonitos: fazendas, gado, aves pernaltas e brancas junto a eles, casas grandes entrevistas no amontoado de árvores.
Mas há casinhas pobres, sofás rasgados nas varandas. Para quem? Lá dormem gatos e cachorros da casa e até vira-latas da rua.
Uma sempre lhe atrai o olhar, quando passa. Desde a primeira vez, quando nunca vira. Pois mesmo não tendo visto, sabia tudo. Sabia até o que havia por dentro. Um quadro de um casal, muito antigo, coisa do final do século XIX, preto e branco, na parede, a mulher abotoada até o pescoço, o homem, um bigode farto. Outro sofá bem grande. Verde. Um móvel na horizontal, dos que não se encontram mais. Uma cristaleira no canto, só achada, hoje, em antiquário. Um quarto só, com a porta dando para a sala.
Uma cortina estampada com motivos também verdes separa os cômodos da cozinha pequena, atrás, dando para um avarandado com telheiro de zinco. Ao fundo, uma hortinha.
Um sentimento confuso enche o peito. É atraído, mas tem medo. Uma mulher mexe nas hortaliças e ele lembra seu nome: Elvira. É fornida de carne e morena, os cabelos presos para cima, relaxadamente. Mas fica linda. Quando abaixa, os seios redondos brotam do decote, vêm saudar as couves, os tomates, as salsinhas.
Parece que vai sentir saudade, porém um sentimento de horror e ódio, mais forte, atropela o outro.
Quer tirar a casa e Elvira da cabeça. Ela, porém, está beijando um rapazote, um buço despontando, atrás de uma mangueira enorme, no fundo de um terreno baldio.
Aos poucos se deitam no chão. Ela levanta a saia comprida do vestido vagabundo, para que o meninote se decida rápido. E tão enlouquecidos se tornam que não veem um vulto chegar, facão de cortar mato na mão.
Com a mão no peito, ele abre os olhos e vira o rosto para a janela. Quer se concentrar na paisagem, que, recentemente, começou a conhecer. O coração, entretanto, ainda sacode violentamente.
Quando o ônibus para, muito tempo depois, ainda não está sereno. Mochila às costas, cadernos e livros dentro, salta meio sonâmbulo ainda, medo de novamente encontrar Elvira.

Convido o visitante deste blogue a ir a Poema Vivo (por aqui), onde há um novo conto meu e a Literatura em vida 2 (o caminho é esse).

Estou ainda em:
1.
Debates Culturais, onde passo, agora a publicar alguns artigos, bastando um clique, na lista "Colunistas", à direita, em Eliane Lima (link).
2
.
Recanto das Letras (aqui).
3. Portal Literal (aqui).
4.
Alma de Poeta (aqui).

domingo, 2 de janeiro de 2011

Parábola II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Nasci rúcula. Uma sementinha foi semeada, com todo cuidado, junto de muitas outras, em um quadrado bem grande. Em outros quadrados, mais adiante, havia couves, hortelãs, alfaces, legumes e frutas. Uma variedade imensa.
Meu criador, às vezes, brincadeira de adulto, fazia enxertos, e criava outras espécies diferentes. E parecia muito orgulhoso com aquilo. Eu vi com estes olhos de rúcula. Pois nasci rúcula.
Fui regada todas as manhãs, bem cedo. Ele me pôs mais terra, quando já taludinha, meu caule parecia meio inseguro. Vinha sempre nos espiar, zeloso. E eu e todos os que estavam ali éramos muito agradecidos.
Mas muitas coisas difíceis aconteceram também: houve dias de sol inclemente, em que minhas folhas ficavam murchas e quase secavam. E dias de vento impiedoso, em que eu quase me desfolhava. E dias de uma chuva que caía sem condescendência e eu pensava que ia me afogar. Nessas ocasiões, eu quase me revoltava e me sentia arrependida de ter brotado, embora nada tivesse dependido de mim.
Mas aquele bondoso ser, que me cultivava com empenhos de pai, sempre vinha, muito preocupado conosco, todas as hortaliças acreditavam, com seus coraçõezinhos mortos de medo, mas reconhecidos. E nos cobria com imensos toldos, já preparados para a ocasião.
Eu reparava, no entanto, com esse entendimento meio curto e verde de rúcula, que, de vez em quando, uma amiguinha minha sumia. Fiquei muito triste, quando, ao acordar, a melhor delas, a que eu mais gostava, e para a qual tinha preparado meu bom-dia, não estava ali. Isso era um grande mistério.
Também acontecia isso, com as galinhas, seres que andavam de um lado para o outro, dentro de um quadrado fechado, e eram muito barulhentas. Sempre depois que elas faziam um berreiro enorme, campeonato de quem dava gritos mais altos. Como era longe, eu nunca sabia o que estava realmente acontecendo.
Hoje sei: estou em cima de uma pedra branca e vejo pedaços de tomates e pedaços de um monte de outros, que ainda ontem tremulavam sob a brisa lá fora, em seus quadrados, agora, dentro de um pequeno objeto de vidro. Acho que germinamos e cacarejamos todos para gáudio de nosso hortelão. Porém sou só uma pobre e indefesa rúcula, com seu julgamento tão parco. Fechando os olhos aflitos, ainda confio nele e imagino que ele sabe o que faz.

(Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)


"parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.] S. f. 1. Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior... " (Dicionário Aurélio - Século XXI - versão digital)

"(pa.rá.bo.la)
sf.
1 Narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior, encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos." (Aulete - dicionário digital)



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