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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Guerra santa?


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ) 

Abriu o papel colocado em sua caixinha de correio. Era uma pregação religiosa, escrita em um papel pautado e de mau gosto. “Que abuso!”, pensou. Quem deu autorização para aquilo ser colocado ali? 
Perguntado, o porteiro disse que não sabia de nada. Não tinham pedido autorização ao síndico. 
Podia reclamar, proibir a colocação em seu escaninho. Mas preferiu outro caminho.
Já em casa, escreveu outra mensagem contestanto todas as palavras. Fechou, assinando-se “um ateu.” Como não sabia de quem se tratava, fez várias cópias e colocou de volta, no espaço do correio de todos os apartamentos.
Não sabendo igualmente a origem da resposta, outra mensagem do asceta foi escrita, refutando a segunda e colocada, de novo, coletivamente.
Quando chegou, à tarde, ao pegar as cartas rotineiras, novamente um ataque de raiva. Foi direto responder, agora já subindo o tom.
No dia seguinte, perscrutou sua caixinha do correio, bastante ansioso. O prédio inteiro já acompanhava a disputa. 
Sentado no sofá, viu que o outro também recrudescera na resposta. Era digna de um cruzado, de um templário, de um evangélico indignado. Chamava-o de ímpio, dizia-o capazes de coisas atrozes, punha em pessoas iguais a ele a culpa por crimes hediondos, recentemente cometidos – eram citados todos, um a um. 
Os comentários começaram a grassar. O síndico já estava disposto a descobrir quem eram os dois engraçados e a acabar com aquilo, mas os vizinhos disseram que não. Acompanhavam o caso, como quem acompanha uma novela. 
Como ouviu, por acaso, no elevador, uma conversa em que um dos moradores falava da intenção do síndico de descobrir e multar os dois, o primeiro missivista resolveu recolher, pelo menos temporariamente, seu sermão religioso. O outro, como não recebesse mais nenhuma provocação, também ficou silencioso, aguardando a próxima jogada do oponente.
Quem não gostou nada daquilo foram os outros moradores, que tinham garantido muita gargalhada no final da tarde. E, estranhamente, as caixinhas do correio começaram a ser inundadas por uma coleção variadíssima de provocações de ateus e pregadores, dos mais variados estilos. 

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sábado, 10 de novembro de 2012

Armageddon

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Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Um estrondo. Era o fim do mundo.
Acendeu a luz. Não entendeu logo. A copa de uma árvore entrando pela janela aberta.
Uma revoada de passarinhos no quarto. Batiam em seu rosto. Voavam desesperados para todos os lados.
Abaixou-se no chão. Viu uns três. A árvore da rua havia quebrado e caído sobre sua janela, com certeza. Já tinham previsto aquilo e reclamado. Ninguém tinha vindo cortar.
Atordoadas, as aves não sabiam o que fazer. A luz acesa piorava. Chocavam-se de um lado para o outro, tão desnorteados como seu coração, que também batia desesperado nas paredes do peito. Sentia vertigem.
Apagou a luz e saiu do quarto, tropego, tentando recobrar a lucidez. Ficou olhando do corredor, tentando se acalmar, estatelado contra a parede. Ainda via os pobres bichos zanzando, semi-iluminados pela luz da rua, filtrada entre os galhos.
Uma surpresa, era isto. Uma surpresa para ele, em seu mundinho de sono, tranquilo. Aquilo era o imprevisto, a invasão do inesperado, de um mundo desconhecido. Acordado por seres de outro planeta. Pássaros são bucólicos e belos, quando voam no céu, quando pousados nas árvores e fios, quando pressentidos em seus ninhos nas árvores. Desse modo, pertencem ao nosso mundo. Entrando pelo quarto, à meia-noite – que horas seriam? –, equivaliam a vampiros, que invadem traiçoeiros.
Uma surpresa para eles também. Que susto não sentiram ao ver seu mundo desabando, quando foram jogados ali dentro, quando a luz se acendeu, como câmara de tortura! O pavor do inesperado. Do inimaginável. A desagregação de seu universo.
E ele ali, a andar, tonto, como ser de outro planeta. Seu quarto era outro planeta. Presos entre aquelas paredes, sem possibilidade alguma de fuga.
Com toda a cautela, voltou agachado ao quarto. Já não ouvia barulho. Deviam estar pousados, estatelados contra a parede também, tentando entender o que tinha acontecido. Aproximou-se da janela, afastou como pôde alguns ramos, deixando passar a claridade dos postes para que a abertura fosse vista.
Pegou, sorrateiramente, uma roupa para descer até a rua. Já ouvia vozes assustadas lá embaixo.
Quando voltou, bem mais tarde, seu mundo estava de volta.

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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O sábio não chinês

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Ficou admirando a estatueta “no seu momento”, como chamava algumas horas da manhã que dedicava à leitura, sentado na biblioteca, diante de uma estante cheia de livros.
Era muito bonita mesmo, de porcelana fina. Fina e cara. Era um sábio chinês antigo, de uma daquelas dinastias, como havia lhe avisado o dono do antiquário. Intelectual, a comprara por amar os livros e as obras de arte. E, quando em um daqueles momentos tinha levantado a cabeça para refletir sobre o que estava lendo, batera com os olhos nela.
Mas o que seria um sábio, chinês ou não? Ele responderia às questões da vida? Daria conselhos às pessoas? Saberia, por fim resolver, com facilidade, as questões da própria vida? Um sábio seria mais feliz que as outras pessoas?
Nesse caminhar, lembrou-se de um velho, meio desdentado, que vivia numa cidadezinha do interior, onde tivera um sítio há muitos anos.
O velho não tinha profissão. Aliás, o velho não tinha nada, uma casinha de um cômodo, caindo aos pedaços, se é que aquilo podia ser chamado de casa. Vivia de expediente, como o povo diz, capina aqui, retira entulho lá. Ganhava só para comer... e mal. Fora a caridade do povo do lugar, um pouco menos pobre, que gostava muito dele.
Não sabia ler e não tinha ideia de absolutamente nada mais que não as cercanias em volta. Ia muito raramente até o centro de comércio, com muito susto. Não sabia que havia um mundo enorme em volta dele.
Um dia lhe perguntaram se ele havia votado para presidente. Ele perguntou se presidente era o mesmo que “perfeito”, que ele pronunciava com um “r” muito palatal. Então perguntaram, de novo, se ele sabia o que era um prefeito. “É o dono de tudo em volta, até da cidade”, disse rindo muito, todo contente da explicação.
- Até de você?
- Inté! – e riu mais ainda, talvez por se sentir, assim, protegido.
Contava que dormia muito bem. Que era isso que um homem feliz devia fazer. Não sem antes agradecer pelas coisas boas que tinha.

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domingo, 23 de setembro de 2012

A escada em caracol

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais) 

Desde que se entendera por gente via aquela escada em caracol no segundo andar da casa, indo para um terceiro, supostamente. A meio caminho havia uma porta e ele não podia passar.
Tinha perguntado várias vezes se a escada terminava ali, mas os adultos diziam que não, “era bem comprida.” Quando perguntava onde ia dar, respondiam que “a lugar nenhum”. Ora, aquilo não fazia sentido. E sempre tinha guardado a impressão que a resposta era uma mentira. Que havia um mistério, portanto, naquilo. E a imaginação se alimentava do enigma.
Já maiorzinho, tivera a ideia de olhar por fora da casa. Mas só tinha visto o telhado, que era bem alto em verdade. Haveria algum outro cômodo ali?
Com a adolescência, vieram os estudos rigorosos, provas, concursos e ele nem teve tempo de reparar mais no princípio da escada e sua porta.
Até que se mudaram para outra residência e, finalmente, para outro estado. E a escada lá ficou, na casa grande e antiga e no fundo de sua memória mais preciosa.
Nunca soube explicar por quê, mas sempre que um problema qualquer o perturbava, uma desilusão, uma contrariedade, uma tristeza, sua mente fugia do presente e tentava subir por aquela escada, abrir sua porta. Haveria algum abrigo misterioso naquele terceiro andar. E foi assim pela vida à fora.
Um dia, sem querer, às vésperas da aposentadoria, viu no jornal um anúncio de uma casa, lá em sua cidade natal. Chamou-lhe a atenção o endereço, viu que era a velha casa da infância. Por procuração com parentes, comprou-a.
Então voltou à cidade. E, quando finalmente subiu, havia um cheiro de mofo naquele acesso ao andar superior, com suas voltas contínuas. Lá em cima, outra porta, dando para lugar nenhum: uma espécie de diminuto terraço, atrás da casa. Como a gradinha era muito baixa, representava perigo para uma criança. Seria aquele o motivo de tanto segredo?
Tinha um plano de reformar o imóvel e morar ali. Mas a porta da escada continuaria trancadíssima, estimulando o devaneio dos pequenos. E não permitindo que seu tesouro escapasse. A escada em caracol levava direto ao andar da fantasia.


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domingo, 9 de setembro de 2012

Parábola * III

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Nasceram no mesmo dia. O pai, professor latinista, resolveu chamá-las de Letícia – alegria – e a outra, o seu contrário: Tristícia.
No entanto, a gêmea mal agraciada pelo nome, mostrou que quem escolhia seu destino era ela: mamava muito, chorava para ser colocada no colo, sorriu primeiro, andou primeiro, leu e escreveu primeiro, estudou mais e melhor.
A outra, desde o berço era enfezadinha: ficava lá, quietinha, e não fosse a mãe tomar conta das mamadas, morria de fome, sem um gemido, só dormindo.
Sempre foi magrinha, embora a mãe a entupisse de comida, para ver se crescia, engordava, perdia a apatia. Ao contrário da irmã, que entrava em todas as brincadeiras, até disputava com os meninos nas corridas. E ganhava. Músculos fortes, sorriso franco e eterno.
Letícia, sempre à sombra, tímida, na adolescência, não era convidada pelos rapazes a dançar. Nem sobravam rapazes para ela namorar, pois Tristícia tinha todos à sua volta.
Letícia morreu muito nova. E, mesmo a pouca vida que viveu, foi vivida pela metade. Trísticia, longeva, sempre provou que a vida era pouca para ela.

*"parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.] S. f. 1. Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior... " (Dicionário Aurélio - Século XXI - versão digital)

"(pa.rá.bo.la)
sf.
1 Narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior, encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos." (Aulete - dicionário digital)

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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Eternidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais) 

Parado ali. Esperava o momento entre dezoito horas e dezoito e trinta. “Desce alegre e sorridente, os homens todos em volta, 'colegas de trabalho', diz. Homens. Ela adora homens.” Faltam três minutos.
Debaixo da camisa: “Esse peso apertando a barriga.”. Apalpa. Tem de estar à mão. Para puxar. Às seis e meia. “Vai funcionar? Será que eu sei?”.
Quer ver o sorriso morrer na boca. Entre seus homens. “Só colegas de trabalho!”. Vagabunda.
Olha o relógio: faltam ainda três minutos? Esse relógio não anda. “Está parado?”. O ponteiro de segundos pulando, alegremente.
“Ainda bem: faltam três minutos.”.  Um grande frio na barriga. Medo enorme. O frio é por dentro. Não é do estorvo enfiado pelo cós das calças.
Aguentou tudo. Ver a cretina sempre cercada de homens, quando ia buscar. “Você é ciumento demais”, ouviu. “É obsessivo”, “É doente, procure um médico”. E os homens. Sempre os homens. Raramente via uma mulher ao lado.
“Não aguento mais você!”. Um dia chegou, ela tinha ido embora. Era aquilo que queria. Ficar solta, ficar livre. E o doente era ele. Ele é que aguentou muito, aguentou tudo. Todas as humilhações. Agora é o fim. “Faltam dois minutos?”. “Faltam dois minutos!”.  Suspirou aliviado.
Não sabe o que vai haver depois. “Não importa!”. Olha o relógio: faltam dois minutos para se livrar daquele desespero, dia e noite, dia e noite.
Mesmo estando em casa, representava mentalmente a desgraçada saindo pela porta do edifício, rindo-se com seus homens. Lá dentro é o escritório. “Imagino o que fazem ali.”
“Agora que está sozinha, deve ir-se deitar em lugar mais confortável.” Morde a ponta dos dedos, arranca pele, que sangra. Apalpa a cinta. “O médico está aqui na cintura. Um homem precisa de paz. Ainda não são seis e meia. Ela deve estar saindo.
Aperta os olhos turvos, tontos. “Ela... os homens!!!”
Ouviu o tiro. Nem sabe de onde saiu. 

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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Marina de Luísa

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Moravam em uma casinha rosa em, cidade do interior. Faziam doces e salgados para fora: festas, bares e restaurantes. Não ficariam ricas, mas viviam bem, a ponto de ajudar muitas pessoas desvalidas da cidade.
Eram muito queridas de todos. Conhecidas como Marina de Luísa ou Luísa de Marina.
A primeira era mais comunicativa, um enorme senso prático. Luísa, mais retraída e meiga. Igualmente procuradas, ajudavam a quem necessitasse.
Na rua, eram paradas a todo instante, cumprimento de um, abraço de outra, velhos e novos, crianças agarradas às pernas. A todos, um carinho, um prato de comida, uma dentadura necessitada, uns óculos para perto; cadernos, lápis e livros didáticos para os pequenos. Viviam batendo à sua porta.
Até que Marina deixou escapar para pessoa amiga e íntima, a quem já haviam tirado de grandes dificuldades, que ela e Luísa dividiam o aluguel, a comida e a cama. Foi o escândalo da cidade. Mas elas não ficaram sabendo. Nenhum dos que vinham a sua casa se salvar dos naufrágios veio avisar de que a cidade toda murmurava sobre elas.
E todo mundo sumiu. E as encomendas dos restaurantes, dos bares e festas.
Viram-se mal as duas, assim de uma hora para outra. Tentando achar a resposta, Marina chegou, finalmente, à revelação.
Sem solução, a moça resolveu oferecer o que faziam em cidade maior. A despesa aumentaria com a passagem do ônibus caro, mas não havia solução.
Embora o trabalho e cansaço para se fazerem conhecidas como quituteiras, no final, a coisa acabou saindo melhor do que antes. Vendiam mais  e mais caro.
Como as questões materiais são mais prementes que as morais, os problemas financeiros tornaram a bater à porta dos moradores da cidadezinha, logo, logo, e eles deixaram a intolerância de lado. Um pedidozinho aqui, outro acolá, e  começaram a voltar.
E passaram – para não se comprometerem – a chamar Marina ou Luísa “da casa rosa”.
As moças não se negaram a atender. Mas Marina, por uma questão prática, convenceu Luísa a se mudarem para a outra cidade.

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sábado, 16 de junho de 2012

Encanador

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Entrava na casa das pessoas. E ia para as partes mais íntimas de suas casas: cozinha, banheiro.
Podia ser uma visita rápida, mas era raro. Normalmente, passava o dia todo, às vezes dias. E ia para as partes mais íntimas de suas vidas: ouvia tudo o que se passava ali, sem querer, sem pedir.
Depois de uma visita dessas, raramente olhava para as pessoas e as via do mesmo modo que antes.
Filósofo, descobriu logo que aquilo que entupia e vazava não eram os canos de muitos anos, apodrecidos e embutidos nas paredes. Mais antiga, pré-histórica era a alma humana, corroída por suas velhas e eternas questões. Para essa, ele não tinha solução.

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domingo, 27 de maio de 2012

Volúvel

Eliane F.C,Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Observa da sacada o que o vento faz com um papel que roubou, indomável ladrão, de uma janela desavisada, no fim da rua: imprensa-o contra um muro em suas mãos invisíveis. Desde que caiu ali, o vento se diverte com ele, sem piedade. Só quando se cansar da vingança ou por sorte o desgraçado cair no bueiro próximo, estará findo seu suplício.
Oprimido pela visão, sabe exatamente o que o pequeno mártir está passando. É exatamente assim que a vida fez com ele. Há muitos anos que um vendaval o joga daqui para ali, igualmente tonto, igualmente indefeso, igualmente vítima de uma vingança. De qual, não sabe. Quem saberá? Tantos passam pelo mesmo.
Vivia tranquilo, inconsciente de sua felicidade. Que a gente só sabe da felicidade, quando não tem mais. Sem grandes exageros, ia seguindo seus dias de perfeição.
Até tudo virar. Teresa morreu de repente. O filho resolveu trabalhar em outra cidade. A filha, sempre tão séria e estudiosa, se apaixonou por um malandro. Criticada, relacionamento não aceito, foi embora com o tal.
E ele ficou ali, sozinho, tentando se agarrar nas lembranças boas do passado, as lufadas de vento forte já rodopiando com ele. E vieram as doenças: uma, duas, três. O médico disse que a causa era a depressão, o estresse dos problemas. A causa não importa. Ao papel, só lhe interessa que o vento pare ou que ele seja empurrado para dentro do bueiro escuro.

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sábado, 12 de maio de 2012

Noite em fora

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ) 

Chegou devagar, atendendo ao chamado. A luz era pouca, de abajur.
Sentado à poltrona, um homem lia. Parecia absorto, interessado. Às vezes, um sorriso leve, apenas pretendido. Sabia exatamente que trechos ele estava lendo. Aqueles de pura ironia. Ele próprio se deliciara com eles, tão cuidadoso, quando escrevia.
Sentou-se também, outra poltrona em frente, na penumbra. E ficou ali, alimentado-se das expressões do outro, seus ligeiros esgares de prazer, adivinhava.
Passaram-se duas horas até que o outro se levantasse, preparasse a cama que ficava adiante, se despisse, apagasse a luz.
Permaneceu sentado no escuro, respirando as últimas emanações da leitura daquele homem. Parecia de poucas posses, morando num quarto. Mas, quando chegou, reparou nas duas estantes de livros, que disputavam espaço com a passagem. Livros bons, muitos clássicos. E seu livro tinha entrada garantida.
Avançou o corpo para um banco ao lado da poltrona e viu, forçando a vista, mais dois livros de sua autoria.  
Tinha sido chamado assim que os olhos do outro começaram seu bailado pelas páginas que tinha escrito. Antes não tinha esse prazer, não podia saber. Agora era chamado, atraído era o termo melhor. Aquela sensação de estar sendo convocado, invocado, evocado, na verdade. Vinha sem poder se negar. Involuntariamente. E vinha, existência perpetuada.
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domingo, 8 de abril de 2012

Jogos urbanos II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sempre pensava nisso. Sentado na mesa do atendente – gerente de banco, repartição pública –, via aquele monte de papéis que o funcionário examinava ou catalogava antes de sua chegada. Quando esse se levantava para pegar alguma coisa, imaginava pegar um bolo do meio daqueles, enfiar na maleta que carregava e, ao final do atendimento, levar. Até que fez.
E a adrenalina que sentiu disparar-lhe o coração, enquanto o outro ia falando inocentemente ou mandando assinar, sem perceber o que ele tinha feito, era incalculável. Nem rapel, nem Bungee Jumping, nem escalada de montanha, nem jogar na roleta ou nos cavalos, nem saltar de paraquedas era igual. Estava arriscando tudo. E se o interlocutor desse por falta dos documentos andes dele sair e sumir?
Pés na rua, se meteu no meio dos passantes, entrou no primeiro ônibus que apareceu, estatelado no banco, ofegante, pálido, no peito uma locomotiva desgovernada, sem maquinista.
Muitas ruas depois, saltou, foi pegar o metrô. Mais calmo, começou a rir discretamente. Que aventura!
Precisava se lembrar do lugar onde tinha feito aquilo. Cuidado para não repetir. Pensou no gerente, louco, “Onde está, meu Deus? Tenho certeza de que pus aqui!”. Afastou o pensamento ligeiro.
Em casa, pensou em olhar o que era, de quem era. Não! Isso não! De repente, podia bater o remorso. E estragaria o prazer do brinquedo. Precisava dar um tempo, não se arriscar, não ficar visado.
Embrulhou os papéis, colocou em um saco bem amarrado e, no dia seguinte, na ida para o trabalho, jogou em um lata de lixo no centro da cidade.
Peito renovado, ia aguardar, pacientemente, a ocasião de uma nova aventura.

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domingo, 4 de março de 2012

Viés

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

“Eu dissociado”, diz a psicologia. Havia dois dentro dele. Um que dizia “faça isso” e outro que respondia, sacudindo a cabeça, veementemente: ”Não faço!”
Mas, fora dele, muita gente sempre lhe dizia “faça isso”. E ele não respondia. E não respondendo também respondia: “Não faço!”. “Autista”, diz a psicologia. Mas havia dois dentro dele. Autistas?
E, fora dele, muita gente também dizia para muita gente: “Faça isso.” E muita gente achava até que não fazia. Mas acordava de manhã para ir trabalhar, mas pegava o ônibus entupido de outra gente que também pensava que não fazia, mas tirava da garagem seu carro comprado à prestação em seis anos e ia para o engarrafamento de horas, mas gastava o pouco dinheirinho que sobrava no dia das mães, no dia dos pais, na véspera do Natal, no dia dos namorados, no CD do último cantor sertanejo, no show do cantor estrangeiro decaído que vinha ao país, tudo porque não aceitava o “faça isso”. Independente.
Ele tinha a mesma roupa antiga, que durava muito. A mesma tevê que não era LCD. Andava a pé. Não aceitava cartão de crédito. “Sociopata”, diz a psicologia.

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domingo, 5 de fevereiro de 2012

Invulgar

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

As calçadas estavam cobertas de flores lilases, que não se sentiam constrangidas por se esparramarem até o asfalto.
Na primavera – era primavera! –, as glicínias, que se estendiam por sobre todos os muros das casas, irreverentes e espaçosas, transbordavam para fora, tomando conta de tudo. O passante se sentia homenageado, tendo aquele tapete desdobrado para si.
A rua era famosa pelo colorido aveludado. Mas, nem por isso, abria mão de ser silenciosa e requintada. Vez ou outra passava um carro, caro, importado, da mesma gente que mantinha aqueles jardins cuidados, aquele silêncio perfumado e cromático.
Mas, nem por isso ainda, naquele dia, deixou de haver um corpo caído no meio das flores, atrevendo-se a manchar-lhes a suavidade lilás com seu vermelho impudico e derramado.
Mas não foi só: o atrevimento se estendeu aos carros de polícia que também ousaram quebrar o requinte estabelecido para veículos e vieram se postar ao longo do meio-fio. E violentaram o silêncio dos requintados com suas sirenes obscenas.
E houve mais: as fotos da imprensa, que se avolumou nas calçadas, em volta das árvores, encostando-se nos muros violáceos, que quase se encolhiam com a ousadia.
E aqueles pés, atrevidos, pela primeira vez, coagiram as flores lilases, ofendidas ante a surpresa da invasão.

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sábado, 21 de janeiro de 2012

Parabola III

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Foi parar no meio do bloco. Não soube como. O “Bloco do empurra”. Que fazia jus ao nome. A bandinha, porém, empolgante, tocava alegremente marchinhas de carnaval.
E ia, sambando, na verdade, porque, apesar dos encontrões de todos os lados, era tudo muito divertido.
Lá para o meio, cansada, pretendeu sair. De que jeito, naquele roldão de todo lado? Impossível. E mais empurrão. Agora sentia pressão até de cima, de vez em quando. Parecia que estava encolhendo. Não sambava mais, só ia.
E, pela primeira vez, se deu conta de que aquela bandinha alegre não tocava mais. O som musical que ouvia era plangente, pungente. No entanto ainda ia, sendo levada.
Lá na frente, soerguendo-se sobre os cotovelos, viu, finalmente a bandeira tremulante: “Bloco do empurra... que cai.”


Advertência: Ver verbete do Dicionário Aurélio – século XX, dicionário digital:

“parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.]
S. f.
1.Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior...”

Muita literatura de boa qualidade em Literatura em vida 2 (aqui) e poemas meus (aqui) em Poema Vivo.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Presente

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Vou para o trabalho de metrô. Em pé, na maioria das vezes, vou sonhando. Caso-me em breve, daqui a um mês. Mas não é na noiva que penso ou nas delícias da vida a dois. À minha cabeça, sempre vem um filho.
Primeiro bebê, abraço-o, beijo-o. Ternuras de mãe, penso com um sorriso, porque, quase sempre, quem sonha com filhos são as mulheres. Sou exceção.
Aceno para ele, desde o berçário, ali, enroladinho. Depois, vêm os primeiros dias, os choros à noite, cólicas, ninguém dorme. Nem eu. Passeio com ele, para lá e para cá, dando descanso à mãe. Deve dormir, porque não a vejo ao meu lado. Nem penso nela.
E vêm doenças, febre, ameaça de pneumonia, noites em claro, dando remédio, dorme, acorda, dorme, acorda. Cambaleio e quase caio – será aquela curva violenta que o metrô faz entre duas estações?
Depois a escola. Ensino as lições, na volta do trabalho, já cansado, querendo ver televisão, cochilar no sofá.
Sou chamado à escola e vou, envergonhado, “esse moleque apronta todas, deve ter puxado à mãe”, eu sempre fui um menino quieto e tímido. Bate nos colegas, faz desaforo para a professora. Tira notas baixas na escola, não quer saber de estudo, só joguinhos, televisão. Vive de castigo, nem liga mais, porque sempre dá um jeito de se divertir, nem que seja torturando o cachorro, quietinho, sentado no sofá. Só escuto o ganido do bicho. Corro. Ele com aquela cara de surpresa: “Ué, o que é que esse bicho tem?”
Adolescência é o futuro das crianças. O telefone não para – porque os bandidinhos sempre fazem sucesso com as mulheres? –, nem a conta, que só sobe. E a de energia elétrica e água. “Desligue esse telefone, esse chuveiro, esse computador, esse som, esse... “ são as minhas frases o tempo todo. Meus finais de noite são de desespero, só superados pelos finais de semana.
Não sei quantas noites passo me torturando, telefonando para a casa de todos os amigos – o endereço e telefone que ele deixa, quando sai, não conferem. Porque o celular dele ou está desligado ou é impossível se ouvir alguma coisa que “alguém” fala – será ele mesmo? – no meio daquele zoeira horrorosa que ele chama de música.
Depois vêm os casamentos, um, dois, três. E filhos, e mulheres reclamando, “esse seu filho é um cafajeste, o senhor não se vexa de não ter dado vergonha e educação a ele? Com certeza aprendeu com o senhor, que também tem cara de safado!”.
E ele sempre vem morar conosco – o que será que a mãe dele acha? Nunca a vejo assumindo ou sofrendo com as canalhices de nosso filho. E vem na maior cara de pau, dando despesa, ficando completamente à vontade, como se nunca tivesse crescido. Algumas vezes traz, quando saímos, mulheres para dentro de nossa casa: “Desculpe, estava sem dinheiro para motel.”
Quase perco, de novo, a estação onde tenho de descer. Dessa vez foi demais. Dizerem que tenho cara de safado?! Trazer mulher para dormir em minha cama de casal?!
Estressado, chego ao limite. E, inconscientemente, arranco a aliança de noivado e guardo no bolso para vender.