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domingo, 27 de setembro de 2009

Subliminar

Eliane F.C.Lima

Já tinham dois meninos. Pai satisfeito. Por ele, encerrariam ali. Mãe era louca por uma menina. Teve.
Enfeitou o quarto novo todo de rosa. O máximo que entrava ali era lilás. E pôs borboletinhas. E florezinhas. E bonecas. E almofadas, as mais fofas.
Bebezinho, a menina chorava aos berros, quando a mãe punha no cabelo cacheado lacinhos delicados... e desconfortáveis.
Dois anos e meio, arrancou as asas das borboletinhas para ver como é que eram, enfiou as florezinhas na terra do vaso, fez uma máscara de Batman na cara das bonecas com o pilot preto dos irmãos.
No parque, queria subir nas árvores como os mais velhos. Não sendo "coisa de menina", a mãe segurava embaixo.
Pediu uma bola colorida e linda "igual a deles". Os pais não deram. Furou a dos dois.
No Natal, pediu um caminhão feito o do irmão mais velho, para correr puxando. Ganhou um joguinho de panelas, um fogãozinho lindo.
Pequenininha, bateu nos outros, que não queriam brincar com ela.
Quatro anos, um dia, no almoço, descobriu a explicação: pegou uma salsicha do prato e pendurou entre as pernas. Os pais riram até quase desabar, mas não entenderam nada.

Crime perfeito

Eliane F.C.Lima

Foi à delegacia se entregar. Contou a história ao delegado.
Quarentão, morava apenas com a mãe em uma vila em Botafogo. Cotidiano pequeno, mas seguro.
Morta aquela, viu-se só. Por pouco tempo. Sem ter planejado, conheceu uma mulher, não muito nova, na loja de discos. Papo agradável que só vendo!
Descobertas as afinidades, se amaram. Amor de fim de verão. Sem calores e muito aprazível.
Reformaram a casinha velha e tudo ficou na medida exata: saíam para trabalhar, encontravam-se no final da tarde, felizes. Bebiam vinho, ouviam suas músicas preferidas, viam seus filmes antigos. Perfeição absoluta.
Perfeição demais, pensou a sorte. A companheira teve uma pneumonia e se foi.
Sem a experiência de grandes emoções, viu-se no meio de um furacão. Passou por um estado de profunda depressão, amparado pela família herdada da mulher.
Meio recuperado, voltou para a solidão da casa de vila, onde chorava todos os dias, chamando pela que se foi.
Um dia, no quarto, viu-a, menos do que uma presença. Ela tinha vindo buscá-lo. Atravessara mundos para isso.
Apavorado, colado à parede, gritou "Não!" e desmaiou.
Quando acordou, nada havia. Ela tinha morrido para sempre. Ele a matara.

Fim de linha

Eliane F.C.Lima

Felicidade eterna de uma semana. Marido chega. Toda a rua ouve o arranca-rabo. Muito choro, muito grito. Pai, mãe, irmãs, irmãos. Agora família acredita. Mil olhos de vizinhos. O homem começa a se espalhar, quer quebrar, quer bater. Pai e irmãos, dentes, braços e punhos. O homem começa a apanhar.
O povo caminha aos tapas. Estação, trem parado. O irmão mais forte dá um pontapé: embarcam mala e marido.
(Capítulo do romance O Trem de Eliane F.C.Lima)

Marinha

Eliane F.C.Lima

Um navio bem negro, deslizando por um mar de chumbo. Um céu negro, borrado por nuvens mais negras. De repente, um apito do navio. Grito de dor tristíssimo? Tentativa de fazer-se luz?
Duras vagas, menos dinâmica que estátua, onde o navio desliza negramente. Negro céu, negro mar, negro navio. Lentamente avança, matéria rasgando matéria, esforço de locomoção. Mal se vê a forma. Mal se vê o movimento. Fantasma de fantasma. Quadro pintado, não fosse a frágil mudança.
Um raio de tempestade desesperadamente branco estilhaça em dois a paisagem ao fundo.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Pequeno engano

Eliane F.C.Lima

Sempre ia a espetáculos de cantoras.
Extasiava-se. Não olhava, tirava fotografias com os olhos. Preferia as que andavam no palco, levantavam a platéia. Ela era assim.
Mas também olhava em volta, ligeiro sorriso. O público cantando, as palmas, alegria contagiada. Ninguém ficava parado. Com ela também era assim.
Seus espetáculos eram dados sempre à noite, luz apagada, seu quarto. Colocava o fone de ouvido, o disco girando no sonzinho barato: o palco se iluminava, a banda tocando atrás. Ia até perto da platéia, cantava para um, cantava para outra. Fazia turnês pela Europa, sempre em pé, perto da cama.
No dia a dia, emprego cansativo. Merendeira de escola. Ninguém sabia quem ela era. Quem era de verdade. Tinha nascido mesmo era para os palcos. Mas por um esquecimento bobo da sorte, cantava esganiçado, desafinando até em "Parabéns pra você." Tinha nascido sem voz.

Ingênua felicidade

Eliane F.C.Lima


O pequeno trouxe o filhote. Sujo e faminto. Depois do banho, a mãe:
- O bicho não pode ficar, filho. Nós moramos em um quarto.
Cinco anos, a carinha triste:
- Está bem. Eu já não tenho casa, não tenho pai. Posso também não ter um cachorro.
Lágrimas nos olhos, a viúva rendida à estratégia infantil: o cachorrinho ficou.

domingo, 20 de setembro de 2009

Lição

Eliane F.C.Lima

O que mais amava na vida: suas plantas. Tinha algumas numa varanda minúscula do apartamento em Copacabana. Uma jibóia subia pela grade da janela. Parecia parada, mas subia. A cada dia estava mais no alto. Nada a impedia. Obstáculo na frente, dava a volta.
Era a mudez das plantas, sua aparente estática, sua falta de emoção o que a encantava. Ficava horas tentando aprender sua filosofia. Ela, que era toda paixão.
Não conversava com as plantas, como outras pessoas. Não queria incomodá-las. Elas não eram de conversa. Eram um pouco como os gatos. Não, tinham o temperamento dos gatos elevado ao máximo.
Um dia, foi passear com amigos numa praia. E viu umas pedras pequenas, cabiam nas mãos. Brancas, roliças. Encantou-se com elas. Levou várias para casa.
Na varanda, agora, olhava as pedras. Aquilo é que era silêncio. Aquilo é que era falta de emoção. Não interagiam com ninguém, nem com o sol, nem com o vento. Não se molham pedras. Não se podam pedras. E elas nada devolviam, nem em cor, nem em flores. Não precisavam de nada.
Pedras são o âmago dos seres. Batidos no liquidificador e passados na peneira, joga-se o suco fora. Só o que presta é o bagaço.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O porta-retratos sobre o piano

Eliane F.C.Lima

Toninho era diferente de seus irmãos. Todos eram branquinhos, ele, moreninho. Todos eram robustos, ele, um graveto. Todos paradões. Toninho, a vida era pouca para ele. Puxou ao bisavô paterno. Diziam.
Quebrou a perna, um dedo da mão, costurou várias vezes a cabeça, teve dor de barriga feia: comeu fruta desconhecida.
No quintal, conhecia todos os buracos de formiga. Achava a minhoca mais escondida. Os cachorros andavam atrás feito sombras. Mal aparecia, rabinhos balançando, verdadeira adoração. Pois se o garoto era pura ternura!
É claro, Toninho morreu menino. Viveu mais do que qualquer um em menos tempo. E precisava ver, com urgência, o que havia no outro mundo.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

História malograda

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Meu nome é José. A noite passada tive um sonho horrível. E confuso. Um enredo impensável. O inconsciente inventa histórias impossíveis.
Sonhei que casava com uma menina linda, Maria. Tive um filho. Mas eu ia dar ao mundo esse meu filho mais amado. E isso me faria sofrer.
Depois de adulto, ele saiu de casa, abandonou a família. Passou a andar no meio de estranhos e a dizer coisas estranhas. Era seguido por muitas pessoas. Só amava um pequeno grupo, a quem tratava agora como sua verdadeira e única família. Eu e a mãe ficávamos muito tristes, porque ele parecia amar aos outros e não a nós. Achávamos ingratidão.
No final, e isso eu não consegui entender bem, ele repetia, claramente, para todo mundo, que seu pai era outro. E eu, que o havia criado como um filho dileto, fui impedido de estar perto dele, quando foi morto. No sonho, eu deixava de ser seu pai para sempre.
Acordei assustado. Será um aviso? Prometi a mim mesmo nunca me casar.