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domingo, 2 de maio de 2010

Fidelidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Era um velho guarda-chuva. Estava perfeito, sim. Mas era um modelo ultrapassado, dos pretos, de homem. Mas, hoje, homens já não ligam para a cor do guarda-chuva. Ele tinha ficado em um canto do quarto, atrás de um armário, quase desbotado. Quase.
Tinha enfrentado muita chuva. E vento era o pior. Houve vezes em que temia quebrar. Varetas soltas, ia sendo consertado. Material bom, firme a coluna e o tecido. Ameaçando puir. Só ameaçando, depois de tantos anos e tempestades. Grandes, desses que parecem um guarda-sol de praia. Não era prático no sentido de caber em bolsas. A praticidade de um guarda-chuva, afinal, é proteger da chuva, não ser fácil de carregar.
Mas não estava triste por ter sido esquecido. Pelo contrário. Só queria sossego. Cada vez que iam limpar o quarto e o tiravam do lugar, tremia de medo de ser visto. Voltava para seu canto, após a faxina.
Às vezes, espiava para fora pela janela ou ouvia o vidro sacudindo pelo vento e pela água. A vontade de ver a rua limitava-se à lembrança. Apesar de perfeito, estava velho, não estava mais para confusões.
Mas ouvia, preocupado os comentários dos moradores da casa. Não se faziam mais guarda-chuvas que prestassem. Eram todos descartáveis, mesmo os de loja. Bons eram os antigos, duravam várias gerações. Encolhido, ele pensava: “Eu sou um antigo.”
Um dia, visitas na casa. A chuva começou a cair e surpreendeu a todos. Ouviu as exclamações de surpresa: “Logo hoje, que eu tirei o meu da bolsa.” Era a amiguinha da neta de seu dono. Adolescente. Dessas que não têm cuidado com as coisas e, quando levam alguma coisa emprestada, não trazem nunca mais.
Final da tarde, chuva persistente, alguém lembrou do aposentado. Foi apanhado de trás do armário. Quando, horrorizado já ia saindo nas mãos imprudentes, o avô, tão aposentado quanto o guarda-chuva e bem mais mal-humorado do que ele, olhando feio para a neta:
- Um momento, mocinha... esse objeto é meu. Ninguém me pediu e mesmo que pedisse, não vendo, não dou, não empresto. Veio de meu pai. Cabo de madrepérola.
- Madre quem? – perguntou a moça, cara de incompreensão. E ainda comentou baixo com a amiga – Só podia ser de madre. Preto para combinar com a roupa.
- Dicionário, dicionário! – respondeu alto o velho, apontando para a estante da sala. Pisando firme o idoso e respirando aliviado o guarda-chuva, foram os dois, retos, para o quarto.

3 comentários:

ju rigoni disse...

Adorei o conto! E amei o desfecho. Eliane, eu babo com a sua escolha de palavras.

Bjs e inté!

Marise Ribeiro disse...

Saudade de te ler, amiga! Após liberar a atualização do meu site, é que pude vir me deliciar com seus escritos. Fidelidade tem a dupla conotação: ao dono e à fama, pois não se fazem mais guarda-chuvas como antigamente.
Beijos,
Marise

Márcia Vilarinho disse...

Muito bom. Sou tal e qual o avô, mas com meus livros. Bjs.