Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)
Era um homem quieto. Uns olhos observadores e miúdos, guardando para si o que viam; os lábios finos, quase dois traços naquele rosto sereno; as orelhas ligeiramente grandes, testemunhas acabadas de um ser sem alarde. Apesar de tudo, não era feio, o todo uma harmonia das partes irregulares.
Coisa alguma denunciava o grande respeito que sua mulher e suas três filhas tinham por ele. Muito o amavam, as quatro.
Era ourives. Em um quartinho dos fundos da casa, não fabricava joias, criava obras-primas, Miguel Ângelo do subúrbio: era um gênio, coisa de deslumbrar críticos de arte, se a humanidade conhecesse o trabalho e seu autor.
Só poucas pessoas avaliavam-lhe o valor: a família e um dono de uma rede de joalherias, sofisticadíssimas, que vendia suas peças. Os clientes milionários não tinham a menor ideia de onde vinham e só a cadeia de lojas recebia as loas das revistas especializadas. Não foram poucos os prêmios que algumas de suas peças receberam.
De nada ele soube. E a parte que recebia dava para manter a família, com decência, é verdade, mas sem um excedente para um futuro mais promissor.
O que lhe enchia o coração, sorriso muito econômico, eram os louvores das suas mulheres: “Ele não deveria vender aquela, pelo menos aquela não.” E isso sempre dito a cada nova peça. Ele admirava de todos os ângulos e reprimindo a alma a transbordar de felicidade e orgulho, dizia, laconicamente, que precisavam comer.
A relação entre o ourives e o, agora, seu único comprador fora bastante ocasional, quando ainda fazia suas peças por encomenda.
Tendo ido ao fornecedor de matéria-prima, dono de um pequeno negócio, lá encontrou o rico negociante, amigo do outro de velhos tempos. O dono da lojinha contou que o desconhecido era ourives... e dos bons! O visitante ilustre guardou o endereço escrito a lápis em um pedaço de papel. Um dia, apareceu no distante bairro. Viu as joias, deslumbrado, mas não deixou transparecer sua emoção. Como se fizesse um favor, comprou-as, dizendo tentar “passar adiante”. Encomendou outras e, dali para a frente, o ourives só vendeu para ele.
A mulher do ourives, desconfiada, dizia-lhe que devia procurar saber quem era aquele comprador. Embora de táxi e vestido de maneira bem discreta, não escapava aos olhos perscrutadores da observadora senhora a elegância que emanava dele. Com os anos, ele já quase se tornara um velho conhecido, mas ela ainda mantinha uma dúvida na alma.
Um dia, saiu antes da rotineira visita e ficou esperando, perto de um ponto de táxi. Quando o veículo do negociante passou, ela mandou segui-lo. Boca aberta, viu, no bairro seguinte, o homem saltar e entrar em um carro particular com motorista e tudo. Sem pensar na despesa, mandou o outro atrás.
Pagou com o coração apertado. Com muita timidez, entrou na loja. Uma vendedora se aproximou dela e a mulher desconfiou que era para barrar sua passagem. Agradeceu e disse só pretender olhar um pouco. Um segurança ficou de longe a observá-la e, discretamente, ia seguindo seus passos.
Em uma vitrine especial, as joias de seu marido. Sobre o vidro imaculado, várias revistas abertas, em destaque, exibiam as fotos das peças, mas era outro o nome que estava lá.
Quis gritar que sabia quem criava aquelas maravilhas, o artista, o ser iluminado por Deus, toda exaltada. E o sofrimento escorreu pelo rosto abaixo.
Foi embora, tropeçando pela calçada, soluçando sem pudor pela rua, até conseguir perguntar a alguém por um ponto de ônibus.
Ao chegar a casa, encontrou o marido sentado diante da televisão, o pijama tão limpinho quanto aquela alma singela, que não tinha o direito de profanar. E temeu apagar de dentro dele aquele algo que ela não sabia de onde vinha e que criava o divino. Aquelas orelhas tão amadas não tinham sido feitas para ouvir as terríveis coisas humanas.
E se calou. Dali para a frente, trancava-se no quarto, quando o joalheiro vinha, chorando muito, revoltada por não poder falar.
Até que um dia o marido, discretamente como viveu, se foi. Não fosse pela presença das filhas, o imenso vazio não seria suportável.
Trancou a porta da oficina e escondeu a chave. No velório, pensou que agora a fonte estava seca. A quem o outro iria espoliar? E, para surpresa de todos que sabiam o quanto ela amava o marido, ela não chorou.
No dia seguinte, com a alma vestida de negro, entrou no mundinho do ourives. Sobre a mesa, a obra em que ele trabalhava justamente no momento do infarto. A seu lado, um caderno de desenho desconhecido. Abriu-o. E descobriu um marido ignorado: em cada página, um desenho, feito a grafite, magnífico, de mulher nua: era seu rosto, seus seios, seu sexo, a se contorcer de amor. E, embaixo de cada nova posição sensual, o esboço de cada obra que ele fizera, até a última, inacabada. Em um delírio de criação quase poética, metamorfose do gênio, do desenho a joia surgia, como um presente a ela.
Com o peito a latejar de orgulho dele, saiu do cômodo, trancando tudo que estava lá dentro, inclusive as joias, ritualisticamente, como faziam os súditos aos túmulos dos faraós.
E esperou, ansiosa e deliciada, agora que o marido não podia ouvi-la, a próxima visita do joalheiro.
Era um homem quieto. Uns olhos observadores e miúdos, guardando para si o que viam; os lábios finos, quase dois traços naquele rosto sereno; as orelhas ligeiramente grandes, testemunhas acabadas de um ser sem alarde. Apesar de tudo, não era feio, o todo uma harmonia das partes irregulares.
Coisa alguma denunciava o grande respeito que sua mulher e suas três filhas tinham por ele. Muito o amavam, as quatro.
Era ourives. Em um quartinho dos fundos da casa, não fabricava joias, criava obras-primas, Miguel Ângelo do subúrbio: era um gênio, coisa de deslumbrar críticos de arte, se a humanidade conhecesse o trabalho e seu autor.
Só poucas pessoas avaliavam-lhe o valor: a família e um dono de uma rede de joalherias, sofisticadíssimas, que vendia suas peças. Os clientes milionários não tinham a menor ideia de onde vinham e só a cadeia de lojas recebia as loas das revistas especializadas. Não foram poucos os prêmios que algumas de suas peças receberam.
De nada ele soube. E a parte que recebia dava para manter a família, com decência, é verdade, mas sem um excedente para um futuro mais promissor.
O que lhe enchia o coração, sorriso muito econômico, eram os louvores das suas mulheres: “Ele não deveria vender aquela, pelo menos aquela não.” E isso sempre dito a cada nova peça. Ele admirava de todos os ângulos e reprimindo a alma a transbordar de felicidade e orgulho, dizia, laconicamente, que precisavam comer.
A relação entre o ourives e o, agora, seu único comprador fora bastante ocasional, quando ainda fazia suas peças por encomenda.
Tendo ido ao fornecedor de matéria-prima, dono de um pequeno negócio, lá encontrou o rico negociante, amigo do outro de velhos tempos. O dono da lojinha contou que o desconhecido era ourives... e dos bons! O visitante ilustre guardou o endereço escrito a lápis em um pedaço de papel. Um dia, apareceu no distante bairro. Viu as joias, deslumbrado, mas não deixou transparecer sua emoção. Como se fizesse um favor, comprou-as, dizendo tentar “passar adiante”. Encomendou outras e, dali para a frente, o ourives só vendeu para ele.
A mulher do ourives, desconfiada, dizia-lhe que devia procurar saber quem era aquele comprador. Embora de táxi e vestido de maneira bem discreta, não escapava aos olhos perscrutadores da observadora senhora a elegância que emanava dele. Com os anos, ele já quase se tornara um velho conhecido, mas ela ainda mantinha uma dúvida na alma.
Um dia, saiu antes da rotineira visita e ficou esperando, perto de um ponto de táxi. Quando o veículo do negociante passou, ela mandou segui-lo. Boca aberta, viu, no bairro seguinte, o homem saltar e entrar em um carro particular com motorista e tudo. Sem pensar na despesa, mandou o outro atrás.
Pagou com o coração apertado. Com muita timidez, entrou na loja. Uma vendedora se aproximou dela e a mulher desconfiou que era para barrar sua passagem. Agradeceu e disse só pretender olhar um pouco. Um segurança ficou de longe a observá-la e, discretamente, ia seguindo seus passos.
Em uma vitrine especial, as joias de seu marido. Sobre o vidro imaculado, várias revistas abertas, em destaque, exibiam as fotos das peças, mas era outro o nome que estava lá.
Quis gritar que sabia quem criava aquelas maravilhas, o artista, o ser iluminado por Deus, toda exaltada. E o sofrimento escorreu pelo rosto abaixo.
Foi embora, tropeçando pela calçada, soluçando sem pudor pela rua, até conseguir perguntar a alguém por um ponto de ônibus.
Ao chegar a casa, encontrou o marido sentado diante da televisão, o pijama tão limpinho quanto aquela alma singela, que não tinha o direito de profanar. E temeu apagar de dentro dele aquele algo que ela não sabia de onde vinha e que criava o divino. Aquelas orelhas tão amadas não tinham sido feitas para ouvir as terríveis coisas humanas.
E se calou. Dali para a frente, trancava-se no quarto, quando o joalheiro vinha, chorando muito, revoltada por não poder falar.
Até que um dia o marido, discretamente como viveu, se foi. Não fosse pela presença das filhas, o imenso vazio não seria suportável.
Trancou a porta da oficina e escondeu a chave. No velório, pensou que agora a fonte estava seca. A quem o outro iria espoliar? E, para surpresa de todos que sabiam o quanto ela amava o marido, ela não chorou.
No dia seguinte, com a alma vestida de negro, entrou no mundinho do ourives. Sobre a mesa, a obra em que ele trabalhava justamente no momento do infarto. A seu lado, um caderno de desenho desconhecido. Abriu-o. E descobriu um marido ignorado: em cada página, um desenho, feito a grafite, magnífico, de mulher nua: era seu rosto, seus seios, seu sexo, a se contorcer de amor. E, embaixo de cada nova posição sensual, o esboço de cada obra que ele fizera, até a última, inacabada. Em um delírio de criação quase poética, metamorfose do gênio, do desenho a joia surgia, como um presente a ela.
Com o peito a latejar de orgulho dele, saiu do cômodo, trancando tudo que estava lá dentro, inclusive as joias, ritualisticamente, como faziam os súditos aos túmulos dos faraós.
E esperou, ansiosa e deliciada, agora que o marido não podia ouvi-la, a próxima visita do joalheiro.
3 comentários:
Eliane, que delícia de conto!
E que desfecho supreendente. Amei!
Se tudo chega ao fim, as descobertas também nos levam ao fim comum, da própria vida feita amor, a valer muitíssimo mais que o peso em ouro, mas escancarado fica, ainda, o ouro do calar quando preciso e do falar quando devido. Lindo, lindo mesmo. Abraços.
Joia Rara é este conto! Criativo, bem narrado e com um final bem feito, como todos os bons contos devem ter. Fica-nos aquela exclamação: Que pena! O que é bom dura pouco!
Parabéns, Eliane!
Beijos,
Marise
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