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domingo, 26 de setembro de 2010

Fraternidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Muitas janelas abertas, os curiosos, mas consternados vizinhos, observavam o caixão que saía. Só, Matilde, decidida, embora de olhos vermelhos, comandava tudo. Fechou a porta e entrou na frente do rabecão. O carro saiu devagar, apesar de ninguém seguir atrás.
Sentada no banco do veículo, silenciosa, tentava pensar no que estava acontecendo. Há quarenta anos era empregada de Lurdes. Empregada nada, eram amigas. Sabia tudo sobre a vida da outra e a outra, sobre a dela. Eram mais do que irmãs. Seu corpo todo doía agora, refletindo a perda da companheira, anunciada, mas, de qualquer modo, uma surpresa. Estava atônita, perdida, apesar de ter feito tudo o que tinha de fazer, sua responsabilidade de anos. Ainda não acreditava. Como seria na volta, quando abrisse a porta?
Lurdes sempre ensinava, instruía. Aos poucos, Matilde foi ficando mais atilada. A doente tinha planejado tudo, deixadas as providências tomadas. Havia um dinheirinho, aplicado, para o enterro e para que ela, a empregada, pudesse viver sem largueza, embora dignamente. Em termos práticos, estava garantida. Até a casa seria sua, passada em testamento. Aquela velha casa, simples e querida, era uma versão da amiga que ia agora morar em lugar diferente. Sem ela – e a mulher enxugou as lágrimas sob os óculos. Nenhum bem, entretanto, encheria o palacete vazio, cheio de ecos e cantos escuros, que era, agora, o seu coração.
Refletia sobre o que ainda ia enfrentar: separar-se do único ente querido que tinha, que lá ficaria. E voltar para casa e não ver a outra, ouvir sua voz já bem fraca nos últimos dias, porém ainda alegre e positiva. Lurdes repetia: “Você não fica sozinha, Matilde. Esta casa está repleta de anjos. Meus guias – são muitos, vejo todos eles agora, me sorrindo – vão se dividir e ficam alguns com você. Olhe só, eles concordaram. Vão ficar alguns, porque nós já somos uma só. E há os seus também. Uns bem bonitos.”
E a boa mulher, sacolejando no carro, ia se consolando, relembrando tudo. Afinal, o grande palacete de seu peito não ia ficar tão vazio, tinha mesmo de arranjar espaço para tanta gente. A boca quase sorriu, enquanto os olhos iam transbordando lágrimas.

Espero você em Poema Vivo (este é o caminho) e em Literatura em vida 2 para ler minha nova postagem (aqui).

2 comentários:

ju rigoni disse...

Mais um conto primoroso, Eliane! Da mais autêntica demonstração de fraternidade à mais completa solidão. E na iminência da solidão multidão é providência. Seja ela real ou imaginária...

Bjs, amiga. E inté!

Guidinha Pinto disse...

Li.
Comovi-me.
Que maneira simples, leve e ao mesmo tempo profunda e real que Eliane tem de nos contar «a vida».
Beijo.