Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Fica horas em frente à televisão da loja. Chega mansinho, disfarçando, encosta na parede. No fim, perde o controle: senta no chão. Até que os vendedores enxotam da passagem. Então, acorda. Deixa o gramado, Ronaldinho expulso do jogo.
Sabe tudo do ídolo. Só assim. Entreolhando, espiadinha aqui, outra ali: sai de si. Não mora mais na rua. Não está mais sujo nas mãos, nos pés, nas orelhas. Não tem mais fome, nem falta de carinho. Não fugiu das surras do pai bêbedo, agora preso; da mãe, recebendo homens em casa, filhos postos para fora no meio da noite. Ele é amado, aplaudido, mora no estrangeiro. Aparece no comercial, sorrindo, faz maravilhas com a bola.
Os pedestres param na calçada. Alguns riem: ele gesticula, mexe pés e mãos, mímica inconsciente, dublê do outro. Não vê ninguém, nem a si mesmo, sombra de craque; não escuta nada, nem o ronco da barriga.
Dorme no Largo da Carioca, mas roda por Uruguaiana, Sete de Setembro, Avenida Rio Branco, atrás de televisão ligada. Pode ir até o Catete, chegar à Glória ou dar uma esticadinha até o fim do mundo.
Apelido: Doidinho, posto pelos companheiros de rua. Quase não fala. Só sussurra, age, pensa como o outro. É o outro. Acreditar na realidade é matar Ronaldinho, puro suicídio.
Troca tudo pelo aparelho mágico, mesmo a disputa pela comida. Recebe só a sobra dos amigos, de pena.
Não rouba, honestidade involuntária: não enxerga passantes, nem bolsas, nem celulares. Só grama, e bola e pernas e gol e grito e comemoração. Nem cheira cola, sua droga é mais forte.
Menino ainda, é muito magro, só olhos enormes, orelhas enormes, pés enormes: para ver o rosto moreno, para ouvir o sotaque amado, para andar em sua busca maluca. Por dentro: no peito, coração apaixonado; na cabeça, pura imaginação.
De manhã, olha os jornais. Procura ansiosa por retratos do jogador. E sorri, extasiado. Sem coragem para perguntar o que está escrito. Se vê a cara de outro que também olha a foto, confere a aceitação, a admiração. Se ouve elogio, derrete-se todo: elogiam Doidinho, admiram Doidinho, aceitam Doidinho.
À noite, outra tela. No sonho, Doidinho faz propaganda, dá entrevista, joga de novo com o corpo famoso. Acordando, é uma surpresa: só ele, Doidinho.
Hoje a polícia vem correndo atrás de camelô. Pedra para todo lado. Ronaldinho pula da televisão, corre, sonâmbulo, pela calçada. Um baque no peito. Matou a bola? Escorre suor ou sangue? Vertigem forte, somem as pessoas: nas nuvens, de avião voando para a África do Sul. Vai ganhar a Copa.
Fica horas em frente à televisão da loja. Chega mansinho, disfarçando, encosta na parede. No fim, perde o controle: senta no chão. Até que os vendedores enxotam da passagem. Então, acorda. Deixa o gramado, Ronaldinho expulso do jogo.
Sabe tudo do ídolo. Só assim. Entreolhando, espiadinha aqui, outra ali: sai de si. Não mora mais na rua. Não está mais sujo nas mãos, nos pés, nas orelhas. Não tem mais fome, nem falta de carinho. Não fugiu das surras do pai bêbedo, agora preso; da mãe, recebendo homens em casa, filhos postos para fora no meio da noite. Ele é amado, aplaudido, mora no estrangeiro. Aparece no comercial, sorrindo, faz maravilhas com a bola.
Os pedestres param na calçada. Alguns riem: ele gesticula, mexe pés e mãos, mímica inconsciente, dublê do outro. Não vê ninguém, nem a si mesmo, sombra de craque; não escuta nada, nem o ronco da barriga.
Dorme no Largo da Carioca, mas roda por Uruguaiana, Sete de Setembro, Avenida Rio Branco, atrás de televisão ligada. Pode ir até o Catete, chegar à Glória ou dar uma esticadinha até o fim do mundo.
Apelido: Doidinho, posto pelos companheiros de rua. Quase não fala. Só sussurra, age, pensa como o outro. É o outro. Acreditar na realidade é matar Ronaldinho, puro suicídio.
Troca tudo pelo aparelho mágico, mesmo a disputa pela comida. Recebe só a sobra dos amigos, de pena.
Não rouba, honestidade involuntária: não enxerga passantes, nem bolsas, nem celulares. Só grama, e bola e pernas e gol e grito e comemoração. Nem cheira cola, sua droga é mais forte.
Menino ainda, é muito magro, só olhos enormes, orelhas enormes, pés enormes: para ver o rosto moreno, para ouvir o sotaque amado, para andar em sua busca maluca. Por dentro: no peito, coração apaixonado; na cabeça, pura imaginação.
De manhã, olha os jornais. Procura ansiosa por retratos do jogador. E sorri, extasiado. Sem coragem para perguntar o que está escrito. Se vê a cara de outro que também olha a foto, confere a aceitação, a admiração. Se ouve elogio, derrete-se todo: elogiam Doidinho, admiram Doidinho, aceitam Doidinho.
À noite, outra tela. No sonho, Doidinho faz propaganda, dá entrevista, joga de novo com o corpo famoso. Acordando, é uma surpresa: só ele, Doidinho.
Hoje a polícia vem correndo atrás de camelô. Pedra para todo lado. Ronaldinho pula da televisão, corre, sonâmbulo, pela calçada. Um baque no peito. Matou a bola? Escorre suor ou sangue? Vertigem forte, somem as pessoas: nas nuvens, de avião voando para a África do Sul. Vai ganhar a Copa.
Um comentário:
Eliane, bom dia!
Um belo conto: a realidade das ruas captada com maestria. O menino que sonha o presente na impossibilidade de poder vivê-lo. Belo e triste, é assim seu conto, como "A árvore de Natal na casa de Cristo", de Dostoiévski. Parabéns!
Abraço,
Chico Perna
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