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sábado, 17 de outubro de 2009

Ovelha negra

Eliane F. C. Lima

De um dia para o outro, a casinha abandonada se viu habitada de novo para espanto da cidade, que, há muito, não tinha um bom motivo para se espantar.
Senhor passado dos sessenta anos – ninguém pôde fixar esse ponto –, ele mesmo pintou a casa, por dentro e por fora. Sempre de costas. Ninguém conseguiu dar um bom-dia ou boa-tarde. Não atendeu nem às palmas insistentes do verdureiro, convocado para assuntar. Não comprou o leite tiradinho na hora, de Mané de Elvira, porque não mostrou a cara para aquele “Ô de casa”. Na tendinha da esquina, nem um ovo comprado, o que um vivente sempre acontece de precisar, ou em dia de temporal, uma vela para acender. Nada.
Saía com um jipezinho meio velho. Fechava o portão, cara virada para dentro. Na certa comprava tudo fora e as miudezas de esquecimento: algodão, vela, palito, agulha e linha, lâmpadas várias.
A curiosidade não aguentou mais. O que um não sabe, esse um inventa: “Médico, tinha deixado um paciente morrer e foi para ali, curtir a culpa. Não queria ser reconhecido.” O contador e os ouvintes, aumentado o caso, cada um dando um palpite, iam para casa de alma lavada. Novidade esfriada, não satisfazia mais.
“Era um ex-presidiário. Pena cumprida, tinha voltado para casa e encontrado a mulher com outro.” Primeira versão: envergonhado e desiludido de tudo, sumira de casa. A outra: ele matara os dois e caíra no mundo.
Durante um tempo, vigiado a distância, o medo maior que a bisbilhotice.
- É um padre – o pedreiro-benzedor-eletricista na porta da padaria, enchendo os copos de cerveja dos amigos – Fez mal a uma mocinha lá na paróquia dele e teve que fugir.
Logo umas vinte pessoas batiam na porta do padre local, casa avarandadinha atrás da pequena igreja, meio ressabiadas. O santo homem, embora conselheiro de todas as horas, não dava asas à parolagem maldosa de suas ovelhas.
- Mas que história é essa?! – cortou aquele assim que ouviu a patacoada – É isso que vocês andam inventando também às minhas costas? – vinte cabeças sacudiram para um lado e para o outro, todas envergonhadas – E a Santa Igreja é para estar assim mal falada na boca do povo?! Se escrevo ao Papa, ele vem aqui em pessoa excomungar a cidade inteira.
Voltados para casa, ficaram lá trancados até o dia seguinte. Não viram o fusquinha do padre sair rumo à matriz da cidade vizinha. Lá pediu ao pároco para tomar informações seguras sobre o homem. Nenhuma evidência apurada ou notícia de algum caso daqueles, o próprio padre resolveu procurar o novo morador para acalmar as línguas do rebanho tão bem conhecido, integrando o homem à comunidade.
Vendo que o jipe do homem lá estava, bateu palmas na frente da casa: em vão. Depois chamou mais alto e forte. Deu a volta e gritou por trás, lá para os fundos da cozinha. Ninguém respondeu. Ao desistir, muitas cabeças se esconderam rapidamente para não serem escovadas ali mesmo, o padre com cara de fulo de raiva. O fusquinha, na toda, saiu levantando uma poeira tão densa quanto a ira do religioso.
No domingo, a cidade em peso foi à missa e quem se demorou não achou lugar para sentar. O carrancudo dono da farmácia, que tinha birra com a igreja, foi ali só para gozar a cara do representante de Roma.
Ritual começado, silêncio absoluto, a igreja toda só olhos e ouvidos para o padre. Ele oficiou a missa, sempre sério até a hora do sermão:
- Meus amigos, pela pureza e salvação das almas dessa comunidade, sou obrigado a revelar a vocês onde se esconde o demônio.

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