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domingo, 18 de outubro de 2009

Eva

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Era um sítio pequeno, gente muito pobre. Pouca chuva. Uma ou outra plantação vingava. Mal dava para comer. E alimentar as várias bocas. Umas galinhas ciscadoras. Dois galos magros. Comiam o que achavam. Quase nada. Mas assim mesmo, os ovos salvavam a fome.
O pai caladão avisou à mulher: queria braços machos para ajudar. Desde a primeira gravidez, ele esperava um filho homem. A partir da terceira, já amarrava a cara, comunicado que era mais uma menina. Não entrava mais no quarto. Levava quase um mês para dirigir a palavra à coitada, que além da fome, das dores, dos trabalhos com o bebê e com as outras filhas, ainda carregava a culpa. Cada vez que se sentia prenha, entre a esperança do filho homem e o medo do desfecho. A cada nova menina, mais ódio do marido para si e para elas.
Não adiantava as pequenas madrugarem, trabalhadeiras, irem ajudar o pai, fazendo mais do que o possível, sem uma palavra de revolta. Eram responsáveis pela seca, pela terra árida. Ele nunca olhava direto para elas, ordens dadas de cabeça baixa. A mãe achava que ele nem sabia seus nomes. Custava a ir à cidade registrar, indiferença pela nova criança, capim ruim brotado entre as pedras.
À noite, à mesa, comia mudo, olhos fitando o nada. Era como se estivesse só. As meninas também nada falavam, temendo o pai.
Logo que ele ia para a cama, conversavam baixo, até sorriam. Mas não aguentavam muito, o corpo moído, sem condição de aproveitarem um pouco mais a felicidade de estarem sós, serem mulheres.
No quarto parto, avisado do sexo, saiu de casa e voltou apenas no dia seguinte, bêbado, o que nunca tinha feito. Quis bater na mulher e nas três filhas maiores. Nunca falou com o bebê; não fosse a mãe, cresceria órfã.
Um dia, pensando a mulher que estivesse já livre daquela tortura, muitos anos transcorridos, viu as regras faltarem. Escondeu sua descoberta, mas logo que a barriga começou a crescer, viu-se examinada pelo homem, coisa que há muito não ocorria, usada no sexo da mesma maneira bruta dos galos com as galinhas no terreiro.
Os padecimentos do estado acrescidos pela tensão constante, o pavor do dia do parto, as filhas incluídas no sofrimento. Sem esperança alguma.
Nas primeiras contrações, engoliu o lamento na boca, as dores menores do que o medo. Aguentou o quanto pôde, o marido e as filhas saindo para a roça. Quando foi a hora, deitou-se na cama e fez, sozinha, nenhuma surpresa e imensa aflição, a quinta filha nascer.
Pisada forte do marido, agarrou-se à criança. Ela sabia de tudo.
Não vendo a mulher na cozinha, ele irrompeu no quarto. Um safanão jogou a mãe desesperada para trás. Arrancou a criança, examinou-a, levando embora. As quatro filhas, estarrecidas em um canto, tremiam e choravam, ouvindo os gritos da mãe.
No terreiro, montado o burro magro emprestado, sumiu na poeira. Na estrada para outra cidade, desceu e esperou. Fez sinal para vários carros. No primeiro que parou, tirou o chapéu em cumprimento. Mentiu: era muito pobre e tinha quatro filhos. Sua mulher, acabada de dar à luz, morreu em seguida. Sem mãe e leite, a pobrezinha também ia morrer dali a poucas horas. Por Deus, fizesse a caridade de levar e salvar aquela inocente alma.
Tudo voltou ao normal. Menos a mulher: olhar para longe, fala sem nexo. Foi substituída na cozinha pela mais velha. As meninas cercando a mãe de carinho, se podiam. Penteando os cabelos já embranquecendo.
Coisa de dois anos, surpresa e revolta, o ventre da louca se avolumando. Agora o desespero era delas, alheia a outra.
Nos primeiros gritos da mãe – quem sabe lembrando o ocorrido – a mais velha, sozinhas as duas, levou-a para a cama. Fez o parto da mãe quase desfalecida. A moça aparou um menino magrinho, choro forte. Deu um sorriso, Mulher no paraíso saboreando a maçã.
Chegado o pai, ouviu o choro. Amarrou a cara:
- É menino homem – avisou a irmã.
Na cadeira, mão no peito, arfado forte. Entrou no quarto, a mãe amamentando começou a gritar. Entre os uivos da mulher, pegou a criança à força, sexo visto. Saiu do quarto com um largo sorriso na cara.
Naquela mesma noite, a mulher morreu. Desesperado, ele correu toda a vizinhança procurando outra mulher parida. Coisa fácil de achar.
Cresceu o menino. Alta a sua voz já esquecida, com ele o pai era outro, único pé de milho verde no meio da seca. As irmãs sempre na roça, a mais velha agora mãe do pequeno, agarrado em sua saia, fazendo sempre o que ela queria.
Logo o filho foi junto para a roça, aprender a lida, sol a pino, terra seca. Mês após mês, ano após ano.
Dia ainda escuro, pai levanta para o café. Filho já moço, bigodinho nascido, irmãs em volta. Sobre a mesa, uma mala velha. Do lado, comida amarrada, não para o eito.
- Que é isso? – pergunta o homem, já velho.
- Vou embora. Isso não é vida. Não quero morrer de fome aqui – olho rápido para a irmã mais velha, ela fixa nele.
O homem levanta o rosto direto para as filhas, há muito tempo não faz isso. São tantas. Falta uma. Todas cabeças baixas. Só a mais velha encara. Vê prazer nos olhos dela. Bota a mão no peito. Custa a falar, mas o que sai, sai seco:
- Daqui não sai! Preciso de você na roça.
- As meninas fazem isso sozinhas. São elas que fazem o milagre, o pai não vê?
Olha a irmã que vira o rosto firme para fora. Pega a mala, a trouxinha e sai rápido pela porta. Belo cabelo ao vento ainda frio. As irmãs viradas para o terreiro. Acenando.
No meio da pequena sala, um baque. A primogênita olha para trás: o roceiro caído, mão no peito, boca roxa, cara franzida. Erva daninha arrancada, murchando ao sol. Volta-se para a frente, sacode o braço com mais força para o rapaz que já vai sumindo na poeira do caminho.


(Para voltar para a análise deste conto em Literatura em vida 2, clique aqui).

Um comentário:

ju rigoni disse...

E a gente sabe que ainda há muitos pais como esse por aí... Por incrível que possa parecer, da base ao pico da tal pirâmide. O preconceito contra a mulher, infelizmente, ainda é uma realidade. E não há nada mais triste do que ver alguém insistir na escuridão quando há cada vez mais luz ao redor. Adorei o conto, e especialmente o desfecho!

Bjs, Eliane, e inté!