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domingo, 24 de outubro de 2010

Vida cara

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sentada na cama, as tralhas ensacadas. Lágrimas, não há mais. O rosto inchado, apenas observa em volta. Tarefa simples: um armário de duas portas, dentro do cubículo. Calor insuportável no verão; umidade entrando nos ossos no inverno.
Tinha criado a filha com muito esforço, solteira, ingênua que fora. Nunca se queixou. A menina enchia-lhe a vida. Pobre, muita faxina tinha alimentado suas bocas, pago seu quartinho, a roupa pouca, os livros da pequena. Estudo reduzido, mas muita honradez ensinada pela mãe.
Não tinha podido garantir sua velhice, contudo. Sobrava dinheiro para isso? A mocinha casara cedo, felizmente. Marido era um homem honesto, trabalhador. Nada faltava em casa. Mas sempre renegara a herança da mulher: a mãe.
Naqueles anos todos, ela, “a velha”, como ele dizia, sem o menor acanhamento, tinha feito tudo para agradar ao genro: lavava as roupas dele, passava com carinho para ver se merecia ao menos consideração. Nada. O homem dizia que aquilo nem correspondia à parte do feijão comido. E o resto? Quarto – quarto? –, luz, água e tudo o mais? Que sina a dele ter de trabalhar o dobro para sustentar boca adicional!
A filha, muito submissa, reclamava no quarto, à noite. As vozes se alteravam. A senhora se encolhia toda na cama.
No dia seguinte, a própria mãe abraçava a outra, ambas lacrimosas, e aconselhava que não fizesse aquilo, imagine, atrapalhar sua felicidade. Os homens eram assim mesmo... e onde iria achar outro tão bom, cumpridor de seus deveres? A moça tentava acreditar.
Agora ele tinha decidido e arranjado tudo. Descoberta uma prima dela, velha também e doente, no interior, tão longe, despachava a sogra para lá.
Saindo pela boca, já, a saudade de sua menina. Mas conformava-se, pensando que libertava a filha para ser feliz. Fosse o que fosse, nunca mais a moça engoliria aqueles desaforos e, afinal – deu um suspiro fundo –, a prima era uma pessoa boa e pacata.
Um “Mãe, tá na hora”, resgatou-a dos devaneios. Levantou-se, condenado à morte, convocado por guardas e padre que lhe batem à porta.

Convido meus leitores a meu blogue Literatura em vida 2 (link) e Poema Vivo (link). Estou ainda em Debates Culturais (link), onde passo, agora a publicar alguns artigos, bastando um clique, na lista "Colunistas", à direita, em Eliane Lima. Recomendo ainda, nesse mesmo endereço, a excelente Cintia Barreto, além de todos os outros.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Invencível batalha

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Intrépido era o adjetivo que classificava aquele homem. Nascido na Idade Média, seria cavaleiro heroico de algum rei conquistador.
Tinha nascido, porém, no século XX, vida de cidade moderna e grande.
Defrontava-se, mesmo assim, com muitas batalhas, principalmente as sociais. Talvez até mais acirradas. Não se via o inimigo, quando era o próprio Estado, por exemplo, ferindo seus direitos. Mas não se intimidava, procurando as vias legais ou levando seus concidadãos para as ruas, se necessário. Enfrentou a polícia, seguidamente, braço armado do stablishment para manter-se stablishment. Era um corajoso líder.
E até na vida pessoal. Não ficava quieto, se o síndico do prédio ou algum vizinho, ou qualquer um, seja dita a verdade, lhe faltasse com a devida consideração. Nunca levou desaforo para casa. Direito era direito.
Não que fosse um sujeito de perder as estribeiras, afeito a brigas. Não. Era até muito ponderado, tentando fazer o outro entender o erro cometido. Mas até um limite. Daí para a frente, agia conforme o preciso, embora sem perder as rédeas de seus atos.
Naquelas férias, meio cansado da lide urbana, tinha ido para a casa de uns amigos, localidade rural, mato para todo o lado, pouca gente e muito silêncio. Ideal para um recompor-se, beber vinho à noite, conversar muito, dormir cedo e acordar mais cedo ainda, cheiro de mato molhado de sereno, entrando pelas narinas. Surpreender o sol saindo de sua cama.
Boca ainda cheirando a café com leite e bolo de milho, resolveu passear pelos matos.
E foi andando, descobrindo pequenas trilhas feitas por outros pés curiosos, florezinhas sem pedigree, mas com muitas cores e graças, juntinho ao rosto.
Até que, de repente, a vegetação cerrada abriu e o caminhozinho ladeou uma várzea não imaginada. E viu o único adversário que temia nessa vida: um boi. Aliás, vários deles, amontoados, pastando, sua boca mole para lá e para cá. E seus chifres.
Um deles o olhou tão surpreendido quanto o homem. Continuou, no entanto, seu processo de movimentar o queixo, sem perdê-lo de vista. Ele fez o mesmo, por sua vez.
Estando aqueles a distância, reuniu toda a sua coragem e continuou pela trilha, o olho firme, porém, para o boi.
Dez metros adiante, quando volta a cabeça, finalmente, para a frente, todo o pelo que tinha no corpo se eriçou: pela mesma minúscula vereda, um boi atrasado vinha trotando.
Sem ter onde se esconder, puro instinto, descarga de adrenalina enchendo suas artérias, virou-se de costas e voltou, caminhando o mais depressa que podia, sem correr, para não estimular o terrível animal a fazer o mesmo. Em nenhum momento olhou para trás, cuidado para não desafiar o opositor.
Só parou na segurança do portãozinho familiar e amigo, muito tempo depois, vista escura, pernas bambas. Por sorte, naqueles ermos não tinha topado com vivalma. Mesmo a pessoa mais heroica sempre encontra um desafeto impossível de enfrentar.



domingo, 10 de outubro de 2010

Parceria certa

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Tinha um velho sonho: escrever, pelo menos um conto. Quando menina, fazia belos textos, muito elogiados pelos professores.
O destino, brincalhão, no entanto, tinha trançado outros planos. Muita coisa, muita coisa mesmo tinha acontecido. Se fosse examinar sua vida, veria que a agulha do destino tinha ido de uma ponta a outra, e voltado para a primeira posição, e andado de novo para o outro extremo, e para lá e para cá. Mas ia beirando os sessenta e nunca tinha escrito conto algum.
Há uns três anos, o ímpeto da infância retornou. Pegava uma folha, ficava horas pensando e nada. Já tinha começado até uns rabiscos, mas ficava só nisso. Lia, embolava e ia fazer outra coisa. Frustrada.
E cada vez a sensação aumentava. Parecia que havia alguém crescendo dentro dela. Grávida de um conto: uma narrativa à espreita.
Apanhados papel e caneta, aquele ser interno se encolhia, se amedrontava. Mas era algo forte, um delírio. Que sumia, entre a mente e a folha, pálida, sobre a mesa, qual adolescente esposa medieval, tomada pela lascívia, deitada em confortável alcova com o esposo, branco e velho marquês impotente.
Um dia resolveu relatar exatamente aquele sofrimento. Sem grandes expectativas, deixando a mão deslizar, escreveu: “Tenho um velho sonho: escrever, pelo menos um conto. Quando menina, fazia belos textos, muito elogiados pelos professores. O destino, brincalhão, no entanto, trançou outros planos...”.
Encheu três folhas nervosas, sem interrupção, o esposo substituído, agora, sobre a palha, por um jovem cavalariço moreno.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A chave do destino

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sem emprego, lugar sem recurso, capinava terrenos por encomenda, não fosse morrer de fome.
Num desses, bem cedinho, a enxada bateu em algo duro. Uma pedra? Viu uma ponta acinzentada. Curioso, desencavou. Dentro duma caixa de ferro bastante enferrujada, uma chave esquisita.
Deu tratos à bola: devia ser da porta da casa. Precaução: o dono, se perdesse a chave de uso, garantia entrar, mas com cautela. Casa? Que casa? Terreno baldio, vendido pela primeira vez. Pelo aspecto da caixa, estaria ali há mais de cinquenta anos. Sacudiu a cabeça, sem entender. Deixou a caixa no mesmo lugar, terra em cima.
Continuou sua labuta. Suor por todo o lado. Mas o trabalho ia avançando.
Depois do almoço, corpo sentado sobre pedra grande, marmita comida, lembrou recomendação do dono: apartar a pedra para um canto do terreno. Ia descansar um pouco, porém.
Pensou na ingratidão da vida. Ia para os quarenta. Músculos fortes de tanta capina. Mas inteligente. Adolescente, muitos sonhos. Ia ganhar o mundo. Ganhou aquela enxada, garantia de comida na mesa. Acariciou sua “bichinha”, como chamava.
Espantou a filosofia e a tristeza. Reuniu toda a valentia. Primeiro arrastão, a pesada nem se mexeu. Não saía. Depois de muitas tentativas, já enfurecido. Mexia com sua honra de homem.
Viu que estava travada por uma ponta. Mudou a rota do empurrão e ela andou com facilidade. Então era isso, continuava forte.
Com a enxada, cavucou em volta da ponta. Outro objeto de ferro. Com uma série de golpes, foi afundando o buraco: um cofre, meio metro de comprimento.
Então seu cérebro se iluminou: a chave! Tremendo, concentrou-se todo para saber onde tinha enterrado de novo.
Passou grande parte da tarde, escavando, aflito, coração aos pulos. E se o dono viesse conferir o trabalho? Era dono do terreno, não do cofre. Finalmente achou.
Já anoitecendo, terreno todo limpo, buracos tampados, saiu, empurrando seu carrinho de mão, chave bem guardada no bolso, cofre coberto com sacos velhos voados de longe, enxada cuidadosa por cima.
Guardado tudo em casa, foi receber seu pagamento do trabalho. Era o que faria um homem sem cofre.

Aguardo a todos em Literatura em vida 2 (link) e Poema Vivo (link).