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domingo, 27 de dezembro de 2009

Fruto do mar

Eliane F.C.Lima

Desde os tempos de garoto, era todo concentração.
Um dia, pela primeira vez foi à praia, morador de uma cidade de interior.
A família apertada no carro velho, a praia afastada, vidro aberto da janela, seu rosto era só verde e vento. O veículo corria, mas ele ficava na estrada, plantado nos troncos das árvores e ia diminuindo, diminuindo...
Na água, as outras crianças, explosão de tanta alegria e sal, golfinhos. Ele, mãos enfiadas no chão, era um monte de areia.
Na beira d’água, olhando as ondas, seu corpo liquefeito, ia e vinha, espuma borbulhando na praia.
Cara virada para o alto, subia e planava, suas asas. Todo gaivota, girando no azul, seus olhos, de cima para baixo, prata de peixe e mar.
Durante um bom tempo, indo à escola e em casa, seus livros, ele foi concha e maresia.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pessoa

Eliane F.C.Lima

Um dos seres humanos mais dignos que conheci foi minha tia avó.
Quando nova era orgulhosa. Não aceitara o relacionamento amoroso do pai, viúvo há muitos anos, com uma governanta da casa. Morando na parte de cima, entrava toda vez que a outra aparecia no quintal.
Ficou solteira a vida toda, mesmo não querendo. Tinha sido apaixonada por um rapaz judeu, que a queria também, mas que avisava:
-Quando eu sumir, é porque me casei com uma moça de minha religião.
Dito e feito.
Teve outros namoros, todos gorados.
Um dia, já ida nos anos, conheceu um senhor. Marcou com ela de ir conhecer sua família. Não apareceu.
Contatada a família, revés do destino: morreu na frente do espelho, enquanto dava o laço na gravata.
Com o tempo, já sozinha e só com uma pensãozinha que lhe deixara uma madrinha, teve de trabalhar como acompanhante de uma senhora com problemas mentais, fez serviço de empregada doméstica.
A vida tinha girado. Mas com o mesmo sentimento com que não tinha aceitado o casamento do pai, aceitou sua própria condição, sem nunca reclamar nada, fazendo o que devia fazer. Não parecia triste nem humilhada. Agora o orgulho não era mais defeito, era pura honradez.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Lar, doce lar

Eliane F.C.Lima

Tinha um quadro na parede há muitos anos. Já estava cheio dele. Resolveu guardar e comprar um outro novo.
Passado um ano, precisando de espaço no armário, pegou o quadro e pagou um sujeito para levar, junto com outras tralhas velhas.
Quando saiu de casa, no dia seguinte, lá estava o quadro, postado ao pé de um poste, no meio da calçada.
Sentiu-se meio envergonhado de vê-lo ali, sujando a rua, como se fosse ele que tivesse colocado.
Pegou o quadro e levou-o de volta. Para o armário. Um dia, jogava de novo fora.
Passados dois anos, nova arrumação. O quadro vai parar no lixo de novo.
A síndica reclama do objeto, do lado de fora, junto ao lixo reciclável.
Sem graça, o dono leva o quadro para dentro.
Mais três anos. Armário aberto, o morador pega o quadro. Caminha com ele nas mãos até a sala em direção à porta de saída. Olha para o que está atrás do sofá. Não aguenta mais olhar para ele.
Retira com cuidado. Observa o mais antigo. Realmente, ele é bem mais bonito. E querido.
Vitorioso, o quadro anterior volta para seu antigo posto.