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sábado, 26 de novembro de 2011

Do outro lado

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Morreu. E foi direto para o inferno. Porque tinha feito em vida tudo que prejudicava o próximo. Sem nenhuma preocupação sobre isso. Seu único objetivo era atender a seus interesses pessoais, fossem eles desonestos ou não, ilegais ou não, desumanos ou não. Armou muitas trapaças, sempre com aquela finalidade. Morreu.
E viu-se logo diante do diabo ou um seu representante, não sabia bem. Viu que o tal correspondia, na aparência, exatamente, ao que todos imaginavam. Embora ainda um pouco confuso pela mudança de estado, pensou, velhaco ainda, que aquilo podia ser para impressionar o recém-chegado. Mas não pôde evitar que o medo se apossasse de si.
Seu interlocutor, com uma voz meio rouca, mandou que ele contasse tudo que tinha feito em vida. E que pensasse bem, que não mentisse, pois, se algum mal tinha feito antes, no mundo dos vivos, a mentira, agora, para ele, diabo, seria uma ofensa grave. E sorriu, mostrando um calhamaço de papéis, acrescentando que sua vida estava toda ali, nos mínimos detalhes.
O homem já ia argumentar que, se o outro sabia de tudo, não fazia sentido, então pedir a ele para contar, mas calou-se a tempo, vendo que não estava em condições de fazer desaforos.
E contou. Foi desfiando minuciosamente todas os seus ardis para garantir seu passado bem-estar. A princípio com um fio de voz, a garganta entalada, respirando com dificuldade, todo o corpo tremendo, o coração quase parando. Não de remorso, só de medo.
Reparou, porém, que seu interlocutor, que, no começo estava escarrapachado na enorme cadeira, foi levantando o corpo, chegando-se para a frente, para a ponta do assento, como se não quisesse perder um lance que fosse do relato. E seus olhos brilhavam vivamente, os olhos grudados na boca do falante, adivinhando-lhe as palavras futuras, embebendo-se de suas feições. Todo ele era a própria encarnação do gozo.
Para testar – uma das estratégias do ex-vivo, em vida, era conhecer o terreno onde pisava –, ele contou certos pormenores mesquinhos que poderia ter evitado. O outro sorriu, contente, deliciado. A palavra que veio à mente do que narrava foi “cúmplice”.
No fim, ainda sorrindo, o demo deu um tapinha camarada na perna do homem. Esse, entendendo que aquele era o lugar perfeito para o perdão de seus pecados, ouviu do capeta, companheiro, que andava precisado de um auxiliar, levando-o, fraternal, às suas novas funções.

Aguardo sua visita ainda em meus blogues Poema Vivo (aqui) e Literatura em vida 2 (aqui).










domingo, 6 de novembro de 2011

Quase uma onda verde

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Eram muito preocupados com o meio ambiente. Filiados ao Greenpeace, assinavam todos os manifestos a favor do futuro do planeta. E de proteção às baleias, bebês-focas, peixe-boi, todos os animais em extinção, enfim.
E tome de sacola e papel recicláveis, de lixo com separação seletiva, óleo queimado recolhido em garrafa para ser reaproveitado. Não havia um comportamento ecológico correto que o casal, tomando conhecimento, não passasse a ter, religiosamente.
Compraram, um dia, um terreno na serra, muito verde, clima especial, ar puro, uma cascatinha ao fundo, uma visão magnífica do lugar, no alto da colina. Duas árvores frondosas, cheias de ninhos de pássaros. Exigiram do arquiteto uma planta que deixasse as duas em paz e garantisse a sobrevivência de seus moradores naturais. As aves estavam no mesmo nível que as baleias, não vê?
Quiseram teto que captasse a energia solar, reaproveitamento da água do banho para a privada, caixa d'água que recolhesse a água da chuva para molhar plantas, lavar varandas.
Quando a obra ia começar, o terreno teve de ser limpo. Lá se foram todos os viventes daquele mato enorme. Correram cobra, lagarto, sapo. Apesar de terem ficado preocupados, ainda havia muito mato em volta para eles se abrigarem, o marido ponderou.
Casa pronta, foram passar as férias lá pela primeira vez. À noite, céu tão estrelado que parecia com risco de cair na cabeça. Quando o homem se sentou na varanda, o que lhe caiu em cima foi uma lagartixa. Deu um pulo, dando um monte de safanões e não pôde segurar um “Que bicho nojento!”. A mulher, ao lado, caiu na gargalhada, mas ficou de olho vivo em duas outras que passeavam calmamente. Todas estavam ali, desde que a obra tinha começado, para comer os mosquitos, que vinham aos montes, fartar-se com o sangue dos operários.
Só então os dois, que já tinham começado a se estapear por causa deles, notaram que a casa, janelas todas abertas, estava invadida por uma nuvem.
Passaram a noite acordados, porque não tinham trazido aqueles aparelhinhos elétricos de inseticida, imagine, logo eles, tão conscientes. Nem repelente.
Dia seguinte, foram a um supermercado no centro e, relutantes, tiveram de comprar.
Antes de escurecer, tristonhos, foram fechando as janelas. Que perdoassem os mosquitos. Nenhum dos dois, no entanto, teve coragem de confessar que não queriam também as lagartixas.
Cansados da noite anterior, de muito folguedo na água gelada do laguinho da cascata, caíram na cama e dormiram. Até sentirem alguma coisa andando debaixo das cobertas. Saltaram em um pulo. Luz acesa.
Uma aranha enorme e peluda, vinda do mato, corria sobre as cobertas. Pulou no chão e sumiu.
Passaram boa parte da noite procurando, ansiosos para dormir, meio sonâmbulos. Foi, quando a mulher vislumbrou-a correndo em direção à porta. Chinelo na mão, instinto puro, nem pensou, caiu-lhe em cima. As aranhas enormes e peludas não estão no mesmo nível das baleias.

Aguardo sua visita ainda em meus blogues Poema Vivo (aqui) e Literatura em vida 2 (aqui).