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sábado, 29 de janeiro de 2011

Amoralidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - EDA - RJ)

Há muito tempo não tem mais contidos gestos, como relancear de olhos ou olhar de soslaio. Seus gestos, agora, são todos desabridos. Mora sozinha.
Vai perdendo os enraizados tratos sociais. Pode tudo naquela sua casa. São só seus os bocejos uivados, o comer e raspar o prato, delícia de não deixar nada para trás, o andar nua pela casa.
E, fones no ouvido, cantar a música esganiçada, caras e bocas, a liberdade de ser quem quiser e ser quem é. Reboleira pela cozinha, colher de pau na mão, de matar de rir quem olha, se houvesse quem olhasse. Nenhum pudor nem vexame.
Pode a meia furada, ralinha e confortável, o pulôver puído. Comer a manga madura e limpar a casca, fios amarelos presos no dente, que tira, dedo na boca, escancarada. Nada, nada é proibido.
Obrigação só a comida, que uma vivente tem de comer ou de limpar a casa, se quiser. Lavar a roupa, pode deixar para amanhã, ou depois de amanhã. Um dia... de improviso.
Pode deitar o dia inteiro, de pernas para o ar e nem fazer a cama de manhã. Se faz, é para achar mais bonito o quarto, agradar a si.
Espalhar os papéis na mesa, no sofá e escrever seus versos, de manhã, de tarde, de noite, no quarto, na sala.
Agora todo desejo é satisfeito, desde o copo de vinho fino – permitido estalar a língua – até, no banheiro, corpo relaxado, porta aberta, e todas as caras feias, ou alegres. Não há mais feição inconveniente, inoportuna, ridícula.
Nenhuma obrigação de fazer a cara discreta, da máscara antiga, posta com o pé na rua. As caras, só as suas, como fossem, todas boas e preferidas.
Não há ninguém para “bom-dia”, engolido seu mau humor e vontade de dizer “que se dane, que eu não quero lhe dar bom-dia”. Agora os dias nascem só para se viver.

Convido o visitante deste blogue a ir a Poema Vivo (por aqui), onde há um novo conto meu e a Literatura em vida 2 (o caminho é esse).


domingo, 16 de janeiro de 2011

Destino

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Às vezes, quando volta da escola, pega o ônibus mais barato. Só quando está com paciência. Criança, a barriga gritando por comida. O veículo vai por lugares não imaginados. Alguns muito bonitos: fazendas, gado, aves pernaltas e brancas junto a eles, casas grandes entrevistas no amontoado de árvores.
Mas há casinhas pobres, sofás rasgados nas varandas. Para quem? Lá dormem gatos e cachorros da casa e até vira-latas da rua.
Uma sempre lhe atrai o olhar, quando passa. Desde a primeira vez, quando nunca vira. Pois mesmo não tendo visto, sabia tudo. Sabia até o que havia por dentro. Um quadro de um casal, muito antigo, coisa do final do século XIX, preto e branco, na parede, a mulher abotoada até o pescoço, o homem, um bigode farto. Outro sofá bem grande. Verde. Um móvel na horizontal, dos que não se encontram mais. Uma cristaleira no canto, só achada, hoje, em antiquário. Um quarto só, com a porta dando para a sala.
Uma cortina estampada com motivos também verdes separa os cômodos da cozinha pequena, atrás, dando para um avarandado com telheiro de zinco. Ao fundo, uma hortinha.
Um sentimento confuso enche o peito. É atraído, mas tem medo. Uma mulher mexe nas hortaliças e ele lembra seu nome: Elvira. É fornida de carne e morena, os cabelos presos para cima, relaxadamente. Mas fica linda. Quando abaixa, os seios redondos brotam do decote, vêm saudar as couves, os tomates, as salsinhas.
Parece que vai sentir saudade, porém um sentimento de horror e ódio, mais forte, atropela o outro.
Quer tirar a casa e Elvira da cabeça. Ela, porém, está beijando um rapazote, um buço despontando, atrás de uma mangueira enorme, no fundo de um terreno baldio.
Aos poucos se deitam no chão. Ela levanta a saia comprida do vestido vagabundo, para que o meninote se decida rápido. E tão enlouquecidos se tornam que não veem um vulto chegar, facão de cortar mato na mão.
Com a mão no peito, ele abre os olhos e vira o rosto para a janela. Quer se concentrar na paisagem, que, recentemente, começou a conhecer. O coração, entretanto, ainda sacode violentamente.
Quando o ônibus para, muito tempo depois, ainda não está sereno. Mochila às costas, cadernos e livros dentro, salta meio sonâmbulo ainda, medo de novamente encontrar Elvira.

Convido o visitante deste blogue a ir a Poema Vivo (por aqui), onde há um novo conto meu e a Literatura em vida 2 (o caminho é esse).

Estou ainda em:
1.
Debates Culturais, onde passo, agora a publicar alguns artigos, bastando um clique, na lista "Colunistas", à direita, em Eliane Lima (link).
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4.
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domingo, 2 de janeiro de 2011

Parábola II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Nasci rúcula. Uma sementinha foi semeada, com todo cuidado, junto de muitas outras, em um quadrado bem grande. Em outros quadrados, mais adiante, havia couves, hortelãs, alfaces, legumes e frutas. Uma variedade imensa.
Meu criador, às vezes, brincadeira de adulto, fazia enxertos, e criava outras espécies diferentes. E parecia muito orgulhoso com aquilo. Eu vi com estes olhos de rúcula. Pois nasci rúcula.
Fui regada todas as manhãs, bem cedo. Ele me pôs mais terra, quando já taludinha, meu caule parecia meio inseguro. Vinha sempre nos espiar, zeloso. E eu e todos os que estavam ali éramos muito agradecidos.
Mas muitas coisas difíceis aconteceram também: houve dias de sol inclemente, em que minhas folhas ficavam murchas e quase secavam. E dias de vento impiedoso, em que eu quase me desfolhava. E dias de uma chuva que caía sem condescendência e eu pensava que ia me afogar. Nessas ocasiões, eu quase me revoltava e me sentia arrependida de ter brotado, embora nada tivesse dependido de mim.
Mas aquele bondoso ser, que me cultivava com empenhos de pai, sempre vinha, muito preocupado conosco, todas as hortaliças acreditavam, com seus coraçõezinhos mortos de medo, mas reconhecidos. E nos cobria com imensos toldos, já preparados para a ocasião.
Eu reparava, no entanto, com esse entendimento meio curto e verde de rúcula, que, de vez em quando, uma amiguinha minha sumia. Fiquei muito triste, quando, ao acordar, a melhor delas, a que eu mais gostava, e para a qual tinha preparado meu bom-dia, não estava ali. Isso era um grande mistério.
Também acontecia isso, com as galinhas, seres que andavam de um lado para o outro, dentro de um quadrado fechado, e eram muito barulhentas. Sempre depois que elas faziam um berreiro enorme, campeonato de quem dava gritos mais altos. Como era longe, eu nunca sabia o que estava realmente acontecendo.
Hoje sei: estou em cima de uma pedra branca e vejo pedaços de tomates e pedaços de um monte de outros, que ainda ontem tremulavam sob a brisa lá fora, em seus quadrados, agora, dentro de um pequeno objeto de vidro. Acho que germinamos e cacarejamos todos para gáudio de nosso hortelão. Porém sou só uma pobre e indefesa rúcula, com seu julgamento tão parco. Fechando os olhos aflitos, ainda confio nele e imagino que ele sabe o que faz.

(Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)


"parábola1
[Do lat. parabola < gr. parabolé.] S. f. 1. Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior... " (Dicionário Aurélio - Século XXI - versão digital)

"(pa.rá.bo.la)
sf.
1 Narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior, encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos." (Aulete - dicionário digital)



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