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sábado, 24 de julho de 2010

Pré-histórico

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

A professora reclamava, as mães dos amiguinhos reclamavam. Sua mãe sempre tinha tentado corrigir aquilo. Em menino, estava sempre de castigo.
Mas nunca adiantou: ele foi até a idade adulta mentindo, como todos diziam. Se estava com alguém, na fila do banco, com os amigos, em qualquer lugar e passava alguém, por exemplo, ele mostrava e dizia:
- Aquele homem ali... – e lá vinha uma história comprida, mas inventada.
Às vezes havia uns lances elaborados e rocambolescos. As pessoas ficavam admiradas. Os desconhecidos acreditavam e ficavam fitando o objeto da história, o tal, com pena, ou revolta, dependia do enredo.

Ele inventava urdiduras até sobre si, visto que fazia uma narrativa em primeira pessoa.
Os amigos, no entanto, foram descobrindo que ele não contava a realidade. Alguns se afastaram dele. Outros faziam questão de não passar por bobos:
- Lá vem esse cara com isso de novo.
Mas a maioria, mesmo sabendo que não era verdade, ouvia e se deliciava. Alguns até apontavam alguém e perguntavam se ele conhecia, só para que inventasse. Ele era capaz de prender a atenção das pessoas por horas. Esses tinham descoberto que o amigo era um ficcionista. Seria um escritor, caso se desse ao trabalho de escrever. Teria ganho muito dinheiro, seguramente. Suas tramas eram de mestre. Mas era um fabulista da oralidade.

domingo, 18 de julho de 2010

Delicadeza e sensibilidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sempre fui uma pessoa muito sensível, desde menino.
Ainda novinho, ia de árvore em árvore do enorme quintal de minha casa. Subia e, se achava um ninho com os ovinhos lá dentro, sem a mãe, acreditava que eles estavam abandonados. Pegava e levava para casa, deixando em uma caixinha que eu tinha ali. Sempre me frustrava. Não nascia nada e eles ainda estragavam.
Quando via aquele monte de formigas no chão de terra, andando para lá e para cá, atarantadas, cria eu, morrendo de pena por ver a aflição delas, que estavam sofrendo muito e, desesperado, para acabar com aquilo tudo, arrastava o pé em todas elas.
Foi assim com a história do gatinho. Sujinho e faminto, levei, escondido, para casa. O bichinho miava muito. Na minha inocência de criança, imaginei que ele tinha esquecido como é que parava de miar. Amarrei a boca dele com um pano. E para que ele não tivesse mais frio, guardei em uma caixa de papelão dentro do armário. Passados muitos dias, como tivesse me esquecido, comecei a sentir um cheiro esquisito. O pobrezinho tinha morrido, imagine a minha aflição. Para que minha mãe não descobrisse nada, joguei no lixo bem longe de casa e derramei meu vidro de perfume dentro do armário. Disse que tinha sido um acidente.
Hoje, mesmo adulto, continuo com esse mesmo tipo de sentimento, imaginem. Continuo a salvar os bichinhos que encontro pela rua.

sábado, 10 de julho de 2010

O inusitado

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sentou-se no bar, meio escurinho, aconchegante. Pediu um drinque, uma coisinha para comer. Tudo leve.
Na verdade, estava ali porque não aguentava mais a solidão. Queria conhecer alguém.
Há algum tempo não namorava. E seus últimos relacionamentos tinham sido todos frustrantes. Só achava uns homens meio bobos, desinteressantes, que não queriam se entregar. Não era compromisso propriamente o que ela queria. Não no sentido literal. Ver-se sempre, ir aos mesmos lugares, andar pra lá e pra cá juntos? Não.
Mas queria poder contar um momento difícil, ter o outro interessado realmente, ouvir uma opinião. Escutar coisas engraçadas, ditas com sensualidade, mas, principalmente, com muito estilo, ao ouvido. E ter um chamego gostoso, beijos de carinho, um homem que entrega a vida toda naquele momento apenas. Para enfrentar a semana de trabalho e estudo que viria, com a bateria amorosa recarregada.
Depois que o garçom se afastou, bebeu um gole e relanceou os olhos em volta. Foi de mesa em mesa. Até que foi atraída para uma, ao canto, onde encontrou uns olhos, que a olhavam. Mas não diretamente. E, lá da adolescência, veio a expressão poética machadiana: os olhos de ressaca, que vão puxando para dentro, como o mar revolto. Uns olhos... de mulher! Sorriu por dentro. De mulher?!
Mesmo surpresa percebeu que estava gostando muito, muitíssimo daquilo.
Tornou a sorrir, agora para fora.

domingo, 4 de julho de 2010

Ermitão

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Tinha passado por aqueles reveses terríveis que só a vida sabe inventar. No último, nada mais que um barquinho à vela no meio de um furacão em alto mar.
De repente, quando veio uma onda maior, sua alma caiu no meio da voragem. Não emergiu mais...
Desesperado, sem rumo, sentia-se perdido numa ilha. Resolveu aproveitar o mote. Comprou uma barraca de camping, cobertor e tudo o mais, muito repelente, colocou as contas em débito automático, fechou o apartamento, e se embrenhou pela floresta da Tijuca, panelas e tudo mais nas costas.
Cuidadoso, foi marcando o caminho para voltar, quando preciso. O cuidado para não se perder de vez – perdido já estava, na verdade – ajudou muito a começar a se equilibrar. Pensar em alguma coisa completamente diferente de sua vida, em alguma coisa concreta, foi o começo do remédio.
Passou a morar na barraca, bem escondida, cobertinha para não chover dentro. Fazia sua própria comida, fogãozinho a gás, para não incendiar tudo.
Passava muito tempo sem ver ninguém. E era pássaro, inseto de todo tipo. Nadava em uma cachoeirinha perto, água gelada que só vendo, corpo nu. Pegava dali para cozinhar, lavar roupa. Para beber, trazia um garrafão de vinte litros, lá de baixo.
Porque descia uma vez por mês, para ir ao banco conferir a aposentadoria e comprar mantimentos. Passava em um barbeiro, cortava o cabelo, o máximo de urbanidade que conseguia agora.
Naquele dia, dormia em um hotelzinho barato. De madrugada, ia ao apartamento só para conferir tudo. De manhã, café em uma padaria desconhecida.
Um dia, em sua floresta, braços abertos de preguiça na manhã que raiava, ouviu um barulho perto, no meio do mato. Deu um passo atrás, escondeu-se atrás de uma árvore.
Viu, com surpresa, sua alma meter a cara entre duas enormes moitas, risonha e desafogada.