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domingo, 27 de junho de 2010

Fartura

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Sol começando a sumir, punha-se a esperar pelo marido, debaixo da mangueira enorme, sombra sobre a casinha pequena. Banquinho simplesinho de madeira. A comida já quentinha, o banho tomado, cabelos soltos, presa, uma flor da roseira.
O cachorro magro se levantava, espetava as orelhas e balançava o rabo, antes de ninguém ver. Lá vinha ele, enxada nas costas, bolsa das sementes no lado, a outra bolsa com a marmita e a garrafa d’água. Andando devagar, chapéu desabado sobre os olhos para tampar do sol.
Trabalhava sozinho na rocinha. Não colhiam muito, mais para comer. Vendiam alguma coisa na feira de domingo. E os ovos das galinhas que ela criava.
Não tinham filhos. Mas até que era bom. O que colhiam não daria para mais outra boca.
Vista ela, ele sorria um sorriso largo, mostrando os dentes lindos, na boca mais linda ainda. Ela achava. Magro, moreno de queimado.
O cachorro já vinha junto, pulando de contente. Ela não pulava, mas era só o que faltava. Abraçava seu homem, feito tivesse vindo de outro planeta. Era esse o sentimento. Nunca acostumada com tanta felicidade. A vida pobre era só um detalhe.
Ele não tinha sido o moço mais bonito do lugar. Nem o melhor dançador. Nem o mais simpático. Caladão que só ele. Mas ela achava muita sorte que ele tivesse se apaixonado por ela. Se achava sem-gracinha, desenfeitada. E era um homão, só ela que sabia, ainda bem. Mesmo depois do trabalho do dia todo, do sol forte, do cansaço. O abraço dele, na cama, era de queimar. Toda minhoquinha debaixo dele.
Às vezes, ela tinha de ir à roça ajudar. Era quando, por sorte e trabalho duro dele, iam colher mais.
Acordava ainda escuro, feliz da vida, fazia uma marmita dupla, quentinha e enrolada em muitos panos. Chapéu na cabeça.
Passava o dia enchendo cestos. Voltava cansada e moída, mas o coração farto de contente.
Queria ir sempre. O marido não deixava. Dizia que ela não tinha de se cansar tanto todo dia. Mas um dia, sem querer, ele soltou a verdade: preservava como tesouro as idas dela à lavoura. Para ele, também eram dias de festa.

domingo, 20 de junho de 2010

Jogos urbanos

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Era muito pacato. Aquele bom amigo com quem todo mundo desabafa. Prestativo, que auxilia o colega na hora do trabalho acumulado.
Mas tinha suas brincadeiras secretas. Aproveitava-se da neurose urbana.
Punha uma touca de tricô na cabeça, uma calça de brim bem desbotada, uma camiseta preta, uma mochila nas costas. Mochilas estimulam a imaginação: para que aquele homem está com aquela mochila? O que haverá lá dentro?
Saía de noite, umas oito horas. Parava em uma rua pouco movimentada, em frente a uma casa. Do outro lado da rua. Perto de uma árvore. E ficava ali, olhando para uma janela. Sempre acontecia de aparecer alguém. E vê-lo. Olhavam um pouco e entravam. Podia apostar: daqui a pouco, olha a tal cara de novo. Agora meio escondida atrás da cortina.
Vinha um, vinha outro, às vezes muitas pessoas juntas. Ninguém podia acusá-lo de nada. Nada fazia.
Tinha documentos na bolsa, era alto funcionário público, bem colocado na vida funcional. E na bolsa, não havia nada de perigoso. Nem arma, nem máquina fotográfica. Só coisas que um cidadão pacato e dentro da lei tem.
Tinha ainda uma boa desculpa. Estava ali esperando um amigo que havia marcado com ele. Iam pegar a mulher dele que estava de plantão em um hospital. Não sabia o que havia acontecido, por que ele ainda não tinha vindo. Tinham combinado de tomar um vinho, até a hora dela sair. Vai ver o carro dele tinha quebrado, o amigo já vinha reclamando de um barulho. Imaginem que ele não tinha trazido o celular para receber o aviso do outro.
Ficava até umas duas horas da manhã. Até ter certeza de que os moradores da casa tinham passado boa parte da noite em claro. E estavam com muito medo. Dispostos a chamar a polícia.
Na primeira vez em que a janela ficava vazia, ia embora, pegava o carro que tinha deixado em outra rua.
Era a pessoa mais pacata do mundo. Qualquer amigo colocava a mão no fogo por ele.

domingo, 13 de junho de 2010

Imutável final

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Leiloquinha do papi,
Tô com uma saudade danada de você. Não esqueço nosso último encontro. Espero você lá na adega. Com esse friozinho, um vinho cai bem. Depois a gente inventa...
Mozão

Oi, my baby Lei,
O que houve? Te esperei até as dez. Tô preocupado. Aconteceu alguma coisa? Só liguei o comput para saber o que houve. A gente não pode ligar pra você, não é...
Mozão

Menina,
Já to ficando nervoso. Mandei a última mensagem há três dias e você não responde. Por favor, diga alguma coisa. Só pra eu saber se está tudo certo. Tenho ido à adega todos os dias ver se você aparece.
Mozão

Oi,
Não tenho conseguido dormir. Estou indo a todos os lugares aonde sei que você vai. Só para te ver de longe. Nem estou trabalhando direito. Não consigo me concentrar. O Pagaré, Paganre, Pangaré descobriu alguma coisa? Viu só o meu desespero, nem consigo escrever direito. Se não responder, vou radicalizar.
Eu

Leila,
Fui a seu trabalho hoje. O pessoal disse que você não tem ido lá. Está doente. Seu marido ligou, avisando. Eu fiquei gelado. Quase desmaiei. Não pode nem levantar da cama para ir ao comput? É isso?
Eu

Oi, Mozão,
Eu estava doente mesmo. Mas estou louca para te ver. Te espero às nove horas. Imagine que o Pangaré vai viajar e fico livre a essa hora.
Abaixo, um endereço novo e seguro para a gente se encontrar. É um hotelzinho bem baratinho, mas escondidinho:
Rua General Gastão da Costa, 52, na Lapa.
Não deixe de ir de jeito nenhum. Bolei um monte de surpresas para você.
Sua eterna Leila.

domingo, 6 de junho de 2010

Velho anseio

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Não tinha conhecido sua mãe. Tinha sido criado pelo pai, um homem simples. Mas sua história era um exemplo daquelas vidas que cheiram à vitória. Pelo menos financeira. Tinha conseguido criar uma rede de comércio e sua família, agora, não tinha a menor idéia do que ele tinha passado. Porque ele tinha passado maus pedaços.
Para que o pai trabalhasse, tinha ficado na casa de uns e outro durante o dia. Na maioria das vezes, não acolhido de boa vontade. Diferença gritante entre as crianças da casa e ele.
À noite, o homem sempre ia buscar o menino. A amizade do pai era quase consoladora. Mas faltava a ele uma mão carinhosa e feminina, as desculpas que uma mãe sempre dá para os malfeitos de filho, mesmo que erradamente. Ele via isso em relação aos outros pequenos. Ele sempre era o culpado. O que doía não era a injustiça, às vezes ele errava mesmo. As lágrimas eram por não ter ninguém que lhe passasse a mão pela cabeça e acreditasse nas mentiras dele, como faziam com menino comum. E ainda as brigas do pai depois, único momento em que poderia ter afeto.
Cresceu meio durão, mas lá no fundo, bem no fundo, ficou o menino desejando colo.
Seus filhos regalavam-se com as coisas boas que podiam ter agora. A mulher era boa e tinha sido escolhida mais por suas qualidades morais do que por seus dons afetivos. A lacuna sempre aberta.
Um dia, já doente, chamou toda a família e alguns amigos. Entregou a um deles um documento que tinha feito em cartório, não confiante na palavra dos parentes. Depois de morto, nada de corpo cremado. Queria ser enterrado em um cemitério dos que havia agora – tinha comprado um lote –, muita terra e vegetação por cima, grama verdinha, natureza. Passaria o resto da eternidade acolhido no colo da Mãe-Terra.