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domingo, 30 de maio de 2010

O poder das palavras

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Quando olhava para a janela da cozinha do apartamento ao lado via o papagaio pendurado no poleiro, perna acorrentada. A moça olhava e dizia:
- Como vai?
Ele nunca respondia. Aliás, só ouvia uns grasnados sem sentido. Para ela, pelo menos. Imaginava que devia ser revolta, pedido de socorro, condenado sem advogado. Era piada, mas não conseguia achar graça. Sempre combinava que ia consultar o Ibama sobre aquilo. Os dias iam, corridos, as horas mal davam para tudo. Sábado e domingo, ninguém ia atender em repartição pública.
Um dia, cabeça em sua janela, ouviu do outro lado:
- Como vai?
Arrepiou-se toda, como a própria ave fazia. Não acreditou. Parece que para confirmar a dúvida, a repetição:
- Como vai?
Agora em outro tom, mais alto e aflito. Exigência de resposta.
- Eu vou bem. E você, como vai?
- Como vai? – repetiu a ave, feliz do contato.
Ficaram nesse diálogo monótono algum tempo, cada um querendo saber como o outro ia, sem resposta, mas muito alegres de se falarem. Até que a hora reclamou a saída.
Todos os dias, agora, ela ia para a janela, saudar o novo amigo.
Alguns dias depois, entrou com ela no elevador um homem comentando com a mulher:
- Papagaio imprestável. É mudo. Não adianta ensinar.
Viu que era o vizinho dono da ave. “Papagaio imprestável”? Afinal, um papagaio só presta para si, aquela era boa. Além de tirar da mata, de acorrentar sua patinha, ainda insultava o bichinho. Teve vontade de dizer quem é que não prestava, contar a verdade, que o papagaio falava, sim, era inteligente. Mas não ia trair o amigo. Ao contrário. Deixaria de almoçar, mas, naquele dia, ligava para o Ibama.
Quando desligou o telefone, pensou, vitoriosa, que o papagaio não era mudo, é que ele só queria falar na hora certa.


domingo, 23 de maio de 2010

Joia rara

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Era um homem quieto. Uns olhos observadores e miúdos, guardando para si o que viam; os lábios finos, quase dois traços naquele rosto sereno; as orelhas ligeiramente grandes, testemunhas acabadas de um ser sem alarde. Apesar de tudo, não era feio, o todo uma harmonia das partes irregulares.
Coisa alguma denunciava o grande respeito que sua mulher e suas três filhas tinham por ele. Muito o amavam, as quatro.
Era ourives. Em um quartinho dos fundos da casa, não fabricava joias, criava obras-primas, Miguel Ângelo do subúrbio: era um gênio, coisa de deslumbrar críticos de arte, se a humanidade conhecesse o trabalho e seu autor.
Só poucas pessoas avaliavam-lhe o valor: a família e um dono de uma rede de joalherias, sofisticadíssimas, que vendia suas peças. Os clientes milionários não tinham a menor ideia de onde vinham e só a cadeia de lojas recebia as loas das revistas especializadas. Não foram poucos os prêmios que algumas de suas peças receberam.
De nada ele soube. E a parte que recebia dava para manter a família, com decência, é verdade, mas sem um excedente para um futuro mais promissor.
O que lhe enchia o coração, sorriso muito econômico, eram os louvores das suas mulheres: “Ele não deveria vender aquela, pelo menos aquela não.” E isso sempre dito a cada nova peça. Ele admirava de todos os ângulos e reprimindo a alma a transbordar de felicidade e orgulho, dizia, laconicamente, que precisavam comer.
A relação entre o ourives e o, agora, seu único comprador fora bastante ocasional, quando ainda fazia suas peças por encomenda.
Tendo ido ao fornecedor de matéria-prima, dono de um pequeno negócio, lá encontrou o rico negociante, amigo do outro de velhos tempos. O dono da lojinha contou que o desconhecido era ourives... e dos bons! O visitante ilustre guardou o endereço escrito a lápis em um pedaço de papel. Um dia, apareceu no distante bairro. Viu as joias, deslumbrado, mas não deixou transparecer sua emoção. Como se fizesse um favor, comprou-as, dizendo tentar “passar adiante”. Encomendou outras e, dali para a frente, o ourives só vendeu para ele.
A mulher do ourives, desconfiada, dizia-lhe que devia procurar saber quem era aquele comprador. Embora de táxi e vestido de maneira bem discreta, não escapava aos olhos perscrutadores da observadora senhora a elegância que emanava dele. Com os anos, ele já quase se tornara um velho conhecido, mas ela ainda mantinha uma dúvida na alma.
Um dia, saiu antes da rotineira visita e ficou esperando, perto de um ponto de táxi. Quando o veículo do negociante passou, ela mandou segui-lo. Boca aberta, viu, no bairro seguinte, o homem saltar e entrar em um carro particular com motorista e tudo. Sem pensar na despesa, mandou o outro atrás.
Pagou com o coração apertado. Com muita timidez, entrou na loja. Uma vendedora se aproximou dela e a mulher desconfiou que era para barrar sua passagem. Agradeceu e disse só pretender olhar um pouco. Um segurança ficou de longe a observá-la e, discretamente, ia seguindo seus passos.
Em uma vitrine especial, as joias de seu marido. Sobre o vidro imaculado, várias revistas abertas, em destaque, exibiam as fotos das peças, mas era outro o nome que estava lá.
Quis gritar que sabia quem criava aquelas maravilhas, o artista, o ser iluminado por Deus, toda exaltada. E o sofrimento escorreu pelo rosto abaixo.
Foi embora, tropeçando pela calçada, soluçando sem pudor pela rua, até conseguir perguntar a alguém por um ponto de ônibus.
Ao chegar a casa, encontrou o marido sentado diante da televisão, o pijama tão limpinho quanto aquela alma singela, que não tinha o direito de profanar. E temeu apagar de dentro dele aquele algo que ela não sabia de onde vinha e que criava o divino. Aquelas orelhas tão amadas não tinham sido feitas para ouvir as terríveis coisas humanas.
E se calou. Dali para a frente, trancava-se no quarto, quando o joalheiro vinha, chorando muito, revoltada por não poder falar.
Até que um dia o marido, discretamente como viveu, se foi. Não fosse pela presença das filhas, o imenso vazio não seria suportável.
Trancou a porta da oficina e escondeu a chave. No velório, pensou que agora a fonte estava seca. A quem o outro iria espoliar? E, para surpresa de todos que sabiam o quanto ela amava o marido, ela não chorou.
No dia seguinte, com a alma vestida de negro, entrou no mundinho do ourives. Sobre a mesa, a obra em que ele trabalhava justamente no momento do infarto. A seu lado, um caderno de desenho desconhecido. Abriu-o. E descobriu um marido ignorado: em cada página, um desenho, feito a grafite, magnífico, de mulher nua: era seu rosto, seus seios, seu sexo, a se contorcer de amor. E, embaixo de cada nova posição sensual, o esboço de cada obra que ele fizera, até a última, inacabada. Em um delírio de criação quase poética, metamorfose do gênio, do desenho a joia surgia, como um presente a ela.
Com o peito a latejar de orgulho dele, saiu do cômodo, trancando tudo que estava lá dentro, inclusive as joias, ritualisticamente, como faziam os súditos aos túmulos dos faraós.
E esperou, ansiosa e deliciada, agora que o marido não podia ouvi-la, a próxima visita do joalheiro.

domingo, 16 de maio de 2010

Rei posto

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Quem vê aquele homem de bengala, guiado por seu cão, se abaixar e fazer-lhe um afago, humildemente, carinhoso e grato, fica comovido. Mas nem sempre foi assim.
Mocinho ainda, sentava no banco do motorista do ônibus como se fosse um trono. Era a única vez em que era importante. Dali dirigia a vida dos passageiros. As que podia. Não se metia com qualquer um, não. Claro. Vingava-se de estudantes e idosos, todos em suas mãos.
Sua profissão era necessária: muitos dependiam dele, os que esperavam no ponto, principalmente. Muitas vezes ele passava direto. De propósito. Para mostrar quem mandava. Exercitava seu poder.
Sabia de sua importância: errando na direção, colocaria a vida dos passageiros em risco. Sentia-se um rei. Era o que compensava sua rotina medíocre de homem sem muita ambição e futuro.
Sua camisa estava sempre limpa e cheirosa, valorização de seu papel social, homem-deus.
Não permitia que vendedores de balas entrassem em seu veículo, nem pessoas com malinhas de animais, guardadinhos e quietos, nenhum estorvo para os outros passageiros. No ponto inicial, palavra definitiva:
- Em meu ônibus cachorro não entra.
Ia embora estourando de orgulho, coluna ereta, cabeça levantada. Mais arrogante do que o dono da empresa. Estava ganho o dia.
Mas o tempo passou, não muito. Um diabetes galopante, herdado de não sei quem da família, o fez se afastar do trabalho. Ficando cego, aposentado de vez. Bengala branca de um lado, no outro, doado por uma pessoa caridosa, teve de ceder o trono e o poder para um modesto cão.

domingo, 9 de maio de 2010

História de criança

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Ao ver minha neta, penso que memória da infância não é coisa em que se confie. As casas enormes de então, revistas quando adulta, diminuem muito.
Fomos uma vez à casa de uma tal Deolinda. Portas enormes. Algumas divididas em quatro: abre-se na vertical ou na horizontal. Encanto dos olhos, imaginação à solta. Comadres, cotovelos apoiados, conversando.
Cozinha imensa, azulejos cumprindo o nome, azuis e brancos, todos desenhados. Ouvi a palavra “coloniais”. Uma mesa grande, de madeira grossa. Filtro grandão, de barro. Moraria ali um gigante?
A dona da casa, mostrando tudo, levou-nos ao segundo andar. Num cômodo de santos, um oratório, muitas estátuas infelizes, olhos de sofrimento. No chão, do meu tamanho, um Santo Antônio. Achei belo ou tive medo, não sei.
E num quarto trancado, a dona murmurou: “Esse não se abre, sabe.” Mamãe parece que sabia. Eu, que não, fiquei morrendo de curiosidade. O que haveria ali? Vi que a anfitrioa e mamãe caminhavam amortecendo os passos. Imaginei logo um ser ameaçador, trancado. Diminuí o andar para ver se ouvia algum ruído incomum. Mamãe olhou para mim com o olhar que os pais sabiam dar antigamente.
Embaixo, mesa da sala, toalha de linho e cheirosa, tivemos um lanche dos deuses. Já satisfeita, a gula não acabava, vendo cada coisa melhor do que a outra. Mamãe caprichou no olhar de novo, mas Deolinda e sua mãe, uma avó de filme, não deixaram mamãe brigar. Envaidecidas por verem que serviam delícias, me incentivavam. Parece que não recebiam visitas com frequência. O que era incompreensível. Tudo ali era bom. Elas muito agradáveis. Mas eu achava que os olhos das duas se pareciam com os dos santos lá de cima, embora as bocas sorrissem e falassem palavras amenas.
Terminado o lanche, fomos para a sala de estar, sofás antigos e paninhos de croché sobre as banquetas e móveis.
Sentadas, as adultas retomaram a conversa. Quando eu disse alguma coisa engraçada, dessas que só as crianças sabem dizer, todas riram alto. Nesse momento, um barulho ensurdecedor começou lá em cima. Pés batiam no chão com força e na porta, além de urros lancinantes. Não sei até hoje se era homem ou mulher. Silêncio absoluto, no primeiro momento, as duas senhoras ficaram vermelhas e sem ação. Eram a vergonha encarnada. Mamãe, bem prática, olhou pela janela e viu papai já esperando naquele carro antigo. Tinha sido uma tarde e tanto, disse consoladora. Esperava as duas em nossa casa. Beijamo-nos todas.
Papai, cabeça na janela: “Acabei de chegar, já ia chamar.” Muda, me joguei no carro, coração aos pulos. Bem que eu sabia. Ali havia uma lembrança para o resto da vida.

domingo, 2 de maio de 2010

Fidelidade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Era um velho guarda-chuva. Estava perfeito, sim. Mas era um modelo ultrapassado, dos pretos, de homem. Mas, hoje, homens já não ligam para a cor do guarda-chuva. Ele tinha ficado em um canto do quarto, atrás de um armário, quase desbotado. Quase.
Tinha enfrentado muita chuva. E vento era o pior. Houve vezes em que temia quebrar. Varetas soltas, ia sendo consertado. Material bom, firme a coluna e o tecido. Ameaçando puir. Só ameaçando, depois de tantos anos e tempestades. Grandes, desses que parecem um guarda-sol de praia. Não era prático no sentido de caber em bolsas. A praticidade de um guarda-chuva, afinal, é proteger da chuva, não ser fácil de carregar.
Mas não estava triste por ter sido esquecido. Pelo contrário. Só queria sossego. Cada vez que iam limpar o quarto e o tiravam do lugar, tremia de medo de ser visto. Voltava para seu canto, após a faxina.
Às vezes, espiava para fora pela janela ou ouvia o vidro sacudindo pelo vento e pela água. A vontade de ver a rua limitava-se à lembrança. Apesar de perfeito, estava velho, não estava mais para confusões.
Mas ouvia, preocupado os comentários dos moradores da casa. Não se faziam mais guarda-chuvas que prestassem. Eram todos descartáveis, mesmo os de loja. Bons eram os antigos, duravam várias gerações. Encolhido, ele pensava: “Eu sou um antigo.”
Um dia, visitas na casa. A chuva começou a cair e surpreendeu a todos. Ouviu as exclamações de surpresa: “Logo hoje, que eu tirei o meu da bolsa.” Era a amiguinha da neta de seu dono. Adolescente. Dessas que não têm cuidado com as coisas e, quando levam alguma coisa emprestada, não trazem nunca mais.
Final da tarde, chuva persistente, alguém lembrou do aposentado. Foi apanhado de trás do armário. Quando, horrorizado já ia saindo nas mãos imprudentes, o avô, tão aposentado quanto o guarda-chuva e bem mais mal-humorado do que ele, olhando feio para a neta:
- Um momento, mocinha... esse objeto é meu. Ninguém me pediu e mesmo que pedisse, não vendo, não dou, não empresto. Veio de meu pai. Cabo de madrepérola.
- Madre quem? – perguntou a moça, cara de incompreensão. E ainda comentou baixo com a amiga – Só podia ser de madre. Preto para combinar com a roupa.
- Dicionário, dicionário! – respondeu alto o velho, apontando para a estante da sala. Pisando firme o idoso e respirando aliviado o guarda-chuva, foram os dois, retos, para o quarto.