Pesquisar este blog

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Ingratidão

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Quando moço tinha sido herói. Quase profissão. O heroísmo foi diminuindo aos poucos. Aos quarenta e cinco, nem um heroismozinho para consolar. Mas também agradecia a Deus: não tinha mais coluna para aquilo. Heroísmo requer uma cervical perfeita e uma ótima lombar. As suas duas em cacarecos. Resultado: foi parando, ele e a coluna; foram enferrujando.
Agora vivia de lembranças, decadência para um herói. Quando um diz “naquela época” ou “no meu tempo” é que o fim já chegou.
Horrível é quando o herói abre a gaveta, recortes de jornal amarelados, para provar as aventuras. Ninguém se lembra mais. Todo mundo sai, finalmente, mas ele fica, vendo uma foto, conferindo outra, olhar parado de saudade.
Ele, agora, além de tudo, tinha dado para diminuir o heroísmo alheio, quando via alguma ação destemina em defesa de alguém, coisa rara de aparecer na televisão, é verdade. Nada que se comparasse a seus feitos, dizia ele, diante da louvação do jornalista. Isso era a pior parte do herói: velho, aposentado, esquecido e sem generosidade. Desdém, sentimento pequenino.
Um dia, uns sobrinhos entusiasmados – herói não casa, não tem tempo –, chegaram a casa, contando um filme novo sobre um badaladíssimo super-herói americano – não aceitava o “super”: ou se é herói ou não se é. Ao recontarem algumas proezas do tal, sentiu-se sufocar. Aquilo era plágio, apropriação indevida do alheio. Tinha sido ele o autor daquela façanha. E provar como? Daquela vez a mídia, que não se chamava assim naquela época, não estava lá. Só um grupo de curiosos e os salvos por sua bravura. Lembrava bem, tinha sido aplaudido por um grupo enorme. Nesses tempos idos, ninguém se dava ao trabalho de patentear nada, boa fé e ingenuidade. E herói legítimo faz tudo por espírito de colaboração. Esse é o valor maior da ação. Recusa até elogios e medalhas. Escondia algumas debaixo das roupas só para lembrar da mãe, a verdadeira colecionadora.
Quando terminou seu discurso indignado, os meninos se embolaram de rir. Adoravam as histórias do tio, para eles pura ficção. Um, mais atrevidinho, sinal dos tempos, ainda comentou:
- Dessa vez você exagerou, tio!
Revoltado com a usurpação, desanimado da vida, teve certeza que nada mais tinha a fazer neste mundo. Resolveu pular de um edifício.
Fotos e mais fotos no jornal. Nenhuma alusão ao passado de glória. Nem um repórter dos antigos foi conferir.
Um religioso, olho pra cima na banca de jornal, cabeça sacudindo, reprovativo:
- Quem se suicida é um covarde.


sábado, 20 de fevereiro de 2010

Dia de sorte

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Não tinha emprego nem casa. Chegava perto de uma quitandinha, dono colocando mercadoria na porta. Perguntava se podia ajudar em troca de umas frutas, no fim do dia. Levava muito “não”, mas, às vezes dava certo. E ia levando.
Um dia, família colocava montes de sacos de lixo na porta. Robustos os sacos e a mãe. Suor pingando da cara de todos.
Pediu para ajudar, no final, davam uns trocados para comprar comida. Meio na dúvida, a dona dos entulhos velhos aceitou.
Trabalhou como nunca, até móveis ajudou a desmontar.
Na hora do almoço, sem mais nem menos, a senhora trouxe um prato enorme: macarrão, feijão, legumes, até bife tinha.
À tarde, agradecido, ainda recebeu uma nota de dez.
Antes de ir pela rua, viu um pipoqueiro. Há quanto tempo não comia pipoca, só pelo nariz. Dinheiro era para comida, mas uma vezinha só...
Saco de bobagem na mão, olho nos sacos de lixo na rua. Beiral de loja era para sentar e pensar: será que tinha alguma coisa para aproveitar ali? Quem sabe vendia?
Lambendo ainda os beiços, foi abrindo os sacos, muito cuidadoso, não fosse espalhar nada...
Num deles, um envelope pardo, enrolado, bojudo, quase explodindo. Aberto, surpresa pura. Muitas, muitas notas de cem, em pequenos maços, elástico diligente.
Sacão de plástico preto fechado, envelope pardo debaixo do braço, respirou fundo. Podia retribuir a gentileza do prato de comida ofertado.
Passos firmes para a casa da família, agora homem de novo. Tocou a campainha: dignidade do coração até a ponta do dedo.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Campanha política

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

- É bom você amolecer seu coração, porque se endurecer mais, ele para.
O rosto ficou vermelho, a camisa molhou-se mais de suor, corpo acostumado ao ar condicionado. Vereador, queria se reeleger. Tinha de andar pelo sol, muitas caras morenas em volta, abraços demorados em corpos malcheirosos.
Teve vontade de desancar, “sai da frente, sua embusteira!”, diante daquela imagem de feiticeira de tribo. Não podia, tipo popular, o povo todo adorava. Até ele já conhecia histórias fantásticas.
A mulher benzia pessoas, muitas curas, juravam. Era capaz de passar a noite toda acordada, umas palavras sussurradas e dando umas beberagens desconhecidas. Dia seguinte, o tal levantava da cama. Conhecia o destino do vivente só olhando na cara. Acertava sempre.
Todo mundo procurava na sua casinha de um cômodo só e banheiro. No meio do mato, construída por ela, tijolo por tijolo. Quase não tinha móveis, nem panelas, tudo de barro.
Não cobrava nada pelas adivinhações. Levavam para ela galinha, legumes, frutas, porquinho para criar. Morriam de velhos.
Um dia, chuva forte, um de respeito parou o carro, abriu a porta. Ela, que vinha passando na calçada, estacou, de repente. Pingando água, mandou levar o menino, que olhava do banco de trás, curioso, para o hospital. A criança não tinha nada. Mas, à noite, crise de apendicite, internado às pressas. O pai, meio assustado, tinha deixado as chaves do carro à mão.
O vereador foi embora aborrecido. E com medo. Era um trapaceiro.
Foi à capital para um check up. Internado, após os exames, foi direto para a mesa de operação.
De volta a casa, visita: a mesma feiticeira, cabelos longos e lisos, cara de índia. Repetiu, devagar, a frase.
Reunidos os assessores, marcou entrevistas com o povo. Passou a ouvir o que os pobres diziam, anotações feitas, melhorias para todos.
Alguns anos depois, por enquete popular, foi apontado o melhor prefeito do município de todos os tempos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Predador

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

A coleta de lixo era terças, quintas e sábados. Às vezes. Na maioria, furava alguns dias. Até uma semana.
Os urubus vieram, cheiro de podre indo longe, lixo em terreno baldio. Cinco ou seis, rondando por ali. Empretecendo a paisagem. Ordeiros e silenciosos, só queriam comer. Embora apenas aves, fúria dos moradores, mau agouro. Para os bichos. Uns anônimos envenenaram o lixo.
Dia seguinte, aves grandes, negras e duras, pernas esticadas.
Embalados com dificuldade, amontoados, montanha no terreno. Lixeiros não vieram. Mas o cheiro de podre veio e foi... longe, vento ajudando.
Três dias depois, o verde virou preto. Olhava-se para um lado, urubu; para outro, urubu; para longe, urubu.
Os moradores ou aprendem as jogadas da natureza em seu tabuleiro ou lutam para regularizar a coleta de lixo.