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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Saudade

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

No local, muitas casas de veranistas pelas ruas de barro. Mas muito espaço ainda verde, matagais.
À noite, as estrelas todas se espremendo naquele céu escuro: audição da cantoria de sapos e grilos, coral assimétrico. Nos caminhos, nem vivalma. Confiantes, corujas metem a cara, muitos u-us cadenciados.
No mato, capim cerrado, folhas grossas e lâminas, de cortar pernas. Touceiras que mãos não arrancam. E árvores muitas. Nenhuma para sombra, servir aos humanos. Crescendo para elas mesmas, livres e selvagens, como as cobras.
No meio de um desses acúmulos – árvores repolhudas –, um coqueiro, único, fino e enorme. Parecia procurar alguma coisa. Fora esticando o pescoço, esticando o pescoço, passadas as copas das companheiras. Havia querido mais, não achando o que buscava.
Levado para ali, projeto de coqueiro, mudar a monotonia, por um cão paisagista, seu toque pessoal. Incomodava as outras, diferente delas. Vento dando, bem ouvia seus murmurinhos, embaixo, inveja e admiração. Mas ele não ligava. O que buscava?
Das ruas-ladeiras, casas de dois andares, varandas largas e brisa, sabia-se a resposta. Lá longe, águas salgadas da lagoa, areia branca debruando o mar, fila de coqueiros: se namoravam à vontade. Sua gente. Mas eram todos pequenos.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Gata

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Para a amiga Aldina Maria Valente

Desde menina ouvia comentários, bons e maus, sobre os gatos. Por isso, foi de pé atrás que recolheu a gatinha imunda, pelos e lama, só olhos e miado. Na loja de animais, comprou remédio contra pulga.
Em casa, algodão nas orelhinhas, lavou-a pacientemente. Surpresa: era branca.
Seca com o secador de cabelos, enrolada em uns paninhos, colocou um pires de leite com farinha de aveia. A bichinha comeu até não poder mais, barriga redonda.
Dormiu muito, colchãozinho de pedaço de espuma, coberto com panos limpinhos.
Telas foram colocadas por fora das janelas. E o tempo foi passando. Se a dona chegava – “gato não tem dono” –, a bichana vinha, agora lindamente esguia, e se retorcia entre as suas pernas, para lá e para cá, carinhosíssima.
Mas o carinho dependia sempre da gata. Deixava-se ou não alisar. Muitas vezes, simplesmente, se levantava e ia para outro lugar, andar elegante, sem pressa. Novamente deitada, olhar de longe para a amiga. Bobagem insistir. Metia-se não se sabia onde. Lembrava as palavras de Maurício sobre ela mesma: “A gente nunca sabe como vai encontrar você. É de veneta.” Logo terminou com ele.
A amizade foi crescendo, mas sempre dentro de limites, sempre uma grande cerimônia entre ambas, nunca ultrapassada. Mariana achava bom, não gostava de gente que tenta estreitar amizade não pedida. Afastava-se também. Convidava pouca gente para sua casa. Não chegassem sem avisar, sem permissão.
Um dia, resolveu, finalmente, se mudar para um apartamento maior. Queria um escritório. Vinha pensando nisso há muito tempo. Mas olhava as paredes, cada buraquinho conhecido delas. E olhava as janelas, a tinta rachada, sua história. Até os prédios em volta, vistos de seu quarto, brincando de roda com o seu, eram dela, posse absoluta.
Andava à noite, para ir ao banheiro, de olhos fechados, não acordasse de todo. Sem erro, o chão, velho amigo, é que ia andando por ela, deslizando sob seus pés. A disposição dos cômodos, aqueles móveis naquela cozinha. Mas foi. Levando a gata.
Telas nas janelas, arrumação feita, na primeira porta aberta para levar o lixo, a gata sumiu. Procurou tudo, desesperada.
Então se lembrou das histórias: “Gato ama a casa, não o dono.”
Quase correndo, foi para o prédio antigo, rua próxima. Lá estava ela, sentadinha na calçada. Olhava para cima, pensativa e estratégica. Quando viu Mariana, veio enroscar-se nas pernas, feliz dela ter compreendido. Seus dois amores reunidos. Voltou a olhar para o alto, cheia de significações.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Língua viva

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Velho professor de língua portuguesa, usava as palavras com significados de dicionário e, por isso, às vezes tinha problemas. A língua é um produto social vivo e os termos vão adquirindo novas conotações populares.
Era daqueles que usava a palavra “ignorante” para adjetivar, corretamente, alguém que não sabia de alguma coisa. Muitos se ofenderam, dizendo que não eram grosseiros coisa nenhuma!
Uma vez, como um aluno conversasse muito, chamou a coordenadora e disse que havia um sujeito atrapalhando a aula. No dia seguinte, a mãe do adolescente, que estudava e trabalhava também, apareceu na escola com sua carteira de trabalho, para provar que o filho não era vagabundo. Muito surpreso, o professor negou que houvesse dito aquilo. Até chegar à expressão mal entendida. Dicionário na mão, custou a convencer a tal senhora.
Mas duas vezes, a situação ficou bem difícil. Uma vez, se referindo às categorias gramaticais, chegou às interjeições. Para exemplificar, disse a um menininho: “Oxalá você seja um homem de bem!”. Comprou uma briga com a família do garoto. Mãe e pai foram à escola resolvidos a ir ao Ministério da Educação denunciar o abuso dele. Que direito ele tinha de ensinar ao filho religião diferente daquela que ele aprendera desde o berço?
Mas a pior de todas foi aquela em que se meteu, já quase perto de se aposentar. Comentando que, não só no Brasil há casos de corrupção, contou aos garotos que, em um outro país, o dono de uma empresa tinha enriquecido desonestamente. Ele sempre ganhava em seus negócios com o governo, porque procurava um determinado ministro, diretamente, e “transava com ele”, enunciou com palavras muito bem escandidas. O que o pobre homem não imaginava era que os jovenzinhos atualizaram a expressão.
Muito admirados, chegaram a casa e contaram aquela história tão escabrosa para eles como para o professor, mas por motivos bem diferentes.
Numa reunião em que estava até a direção, alguns pais “queriam a cabeça” do professor por conduta inadequada. Os mais exaltados, porém, de acordo com a onda do momento, ameaçavam ir à delegacia denunciá-lo por aliciamento de menores.




terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Matéria literária

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Uma vez ou outra, tinha um dia inteiro de folga, fora do domingo. Pessoas comuns vão fazer compras, vão ao cinema, dormem no sofá, televisão às moscas.
Ela, não. Sentava em uma mesinha de bar do lado de fora, em rua bem movimentada. Pedia umas batatas fritas, porção grande, para durar, um chopinho, para ser bebido aos goles, vagarosamente. Porque não era pelo bar, pelas batatas ou pelo chope que estava ali. Era para olhar para as pessoas. As caras das que passavam, apressadas, das que paravam. As conversas entreouvidas, duas ou três aglomeradas. O papo na frente do jornaleiro.
Fartava-se de vozes, de desculpas, de sorrisos, até de palavrões, tropeção dado sem querer.
Ouviu histórias inacreditáveis, confissões de amor, negócios combinados, apelido gritado por um que passava a alguém do outro lado da rua, discussões frenéticas sobre o jogo de futebol da véspera, mentiras óbvias escutadas com credulidade por uma boca aberta.
Custava a ouvir, porém, a voz do garçom, oferecimento de mais um chopinho. E ia ficando.
Quase noite, ia embora, a alma cheia de humanidade. Sentava-se em sua escrivaninha e escrevia seus contos. Mais um livro a publicar.