Pesquisar este blog

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

De todas as eras

Eliane F.C.Lima

Vive quieta na teia, casa própria. Não perde tempo com mitologia, Minerva, seu castigo implacável, inveja divina da antiga beleza de mulher. Afinal, que beleza maior do que aquelas pernas finíssimas, tantas, aquele corpo peludo e negro?
Balança, em sua seda trançada, mais resistente que cabo de aço, feliz de sua aranhice convicta. Espécie de aracnídeo, nada sabe da Grécia, nova ou antiga, atravessado o Rio Letes do esquecimento. Só o tecer ainda o mesmo, trânsito entre os tempos e as formas.
Perdida sua formosura humana – pudesse falar, discutiria a parcialidade do ato narrativo –, a paciência é sua maior virtude. Fica ali, dormindo, abraçada aos fios, casa-cama-caçada.
Ao menor balanço, abre um olho: vento ou presa? No segundo caso, não se afoba. Deixa-se ficar algum tempo, cansando o almoço, não vá ter trabalho. Depois, toda preguiça, sem pressa alguma, caminha para o banquete.
Nunca perde uma refeição: inseto que passe não é mais inseto. Como agora.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Amizade canina

Eliane F.C.Lima

Dizem que os cachorros é que escolhem seus donos. Dentro do universo com que convivem, é claro. Tive a comprovação um dia, numa conversa com uma senhora muito agradável.
Sua filha, casada, com dois filhos e um marido bom, precisou fazer obras de urgência em sua casa. Como um dos meninos fosse alérgico, mudou-se provisoriamente para a casa da mãe. Teve de levar o cachorro.
O pai, que era um homem metódico, aceitou com reservas aquilo. Primeiro, a confusão dos netos. Gostava muito dos meninos, mas em visita, com hora certa para chegar e para ir. Quando, ao final do dia, todos se despediam, o velho, feliz, beijava os netos. Feliz por tê-los visto e convivido com eles, mas, também, por poder, retomar sua calma e a mulher, dividida por tantos, finalmente, só para si.
O pior foi convencer o marido a aceitar a presença do cachorro. A pobre coitada ficou em um conflito. Usou toda a sua diplomacia para que ele aceitasse. Mas foram impostas algumas condições. Animal, só na parte de serviço.
Chegados todos, a casa ficava sempre meio agitada.
Durante a semana, porém, crianças na escola, pais no trabalho, o avô relaxava. Mas sempre que ele chegava à cozinha, lá da área, Tutu latia, abanava o rabinho, derretia-se todo. Meio sem jeito, o velho ia lá fazer uma festinha.
Passados os dias, ele já vinha para o café da manhã e ia direto “falar” com o bicho, antes de se sentar à mesa.
Um dia, chegando das compras, a mulher, boquiaberta, viu seu vultinho peludo deitado na sala.
Sem saber o que dizer, o marido contou que o cachorro tinha ficado chorando lá atrás. Ele ficou com pena.
Resultado, acabada a obra, filha e família voltaram para casa. Levaram Tutu. Que começou a ficar doente, melancólico, nem olhava para a comida.
No apartamento, o avô ia pelo mesmo caminho. Emagreceu um pouco. Dizia-se preocupado com a saúde do cachorro.
De visita para ver como é que ele ia, o cachorro ganiu até que o homem chegasse perto. E dessa vez, foi o avó que convenceu a todo mundo, principalmente aos netos, que Tutu tinha de voltar.
Cachorro e avô gordos, agora juntos, respiram aliviados, quando as crianças se vão.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

Prêmio à reserva

Eliane F.C.Lima

Olhava para o espelho, conhecia aquela cara de muito tempo. Gostava de tudo. Mas não era orgulho da beleza. Era o mesmo amor que a gente tem por um ente querido.
Talvez fosse a única pessoa do mundo que fazia carinho nos próprios braços e pernas. Até entendia gatos e cachorros, que levavam horas a se lamber. Sabia que não era apenas banho, era gratidão. Era isso mesmo, ela tinha um enorme gratidão por aquele velho e cansado corpo que servia a ela, com fidelidade, há tantos anos.
Às vezes, observava os pés ou as mãos e ficava triste, com saudade deles. Lembrava que um dia ia morrer e lamentava por eles, que iam se deteriorar, desaparecer. Não temia a morte por si, mas por cada pedacinho de seu corpo, velho companheiro.
Quando abrissem a tampa do caixão, cinco anos de morta, só encontrariam os ossos para guardar numa caixinha. Sorriu à idéia: abraçou-se toda. Mesmo sem ser vistos, eles estavam ali, tão discretos, fragrados uma vez ou outra em uma radioscopia, temidos pelas crianças, alimentando a imaginação dos medrosos e dos escritores. Protagonistas apenas em contos ou filmes de terror, adulterada a sua enorme função prática.
Todas as partes do corpo, as mais externas, sempre eram admiradas. Mostravam-se em festas, exibiam-se em fotos, eram elogiadas pelos olhares atraídos. E aos ossos, o verdadeiro sustentáculo daquilo tudo, a atenção só era dada, quando, justamente, quebravam ou tinham um problema qualquer. Filhos enjeitados.
Mas a sábia natureza tinha sua filosofia: somente a eles era reservado o direito ao brilho derradeiro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Io me ricordo

Eliane F.C.Lima

Isso se passava no tempo em que crianças não falavam em conversa de adulto, só ouviam.
Alguns almoços de domingo, pai, mãe e filhos sentados à mesa. Era a senha: desciam, da casa de cima, as três irmãs do pai. Vinham conversar.
Começava conversa, sim, idéias jogadas aqui e ali. Tudo muito comportado, ainda.
Aos poucos, um espírito felliano baixava naquela família carioca, avô baiano. Um frêmito tomava conta dos quatro irmãos, ninguém aceitava mais o que ninguém dizia, discussão instaurada.
As crianças, para surpresa dos adultos que seriam futuramente, embora caladas, se divertiam muito, único momento de descontração no rigor da educação severa da época.
Quase indo às vias de fato, providencialmente, sempre uma das irmãs - ou duas - desmaiava e era preciso socorrer. Atentos, os olhos infantis aguardavam, curiosos, o desfecho apoteótico do drama teatral dominical. Pena não poder aplaudir.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Kant e a práxis

Eliane F.C.Lima

O médico avisou: ou dá uma freada, diminui as atividades, ou vai ter um enfarto. O estresse já atingiu o máximo.
Entra em casa, o relógio em cima do móvel, marcando o atraso: onze horas e dezesseis minutos. Tem de sair correndo. Pensa no médico.
Último esforço, em um impulso, levanta a perna e dá um pontapé no coitado, que voa longe e se espatifa na parede.
Quando pensa em rir, é surpreendido. Uma enorme vertigem faz o ambiente girar.
Assustado vê: não é sua cabeça que gira, são as coisas em volta. Estante, sofá, paredes, o vaso de planta, tudo roda em espiral, feito olho de furacão. Sente muito desequilíbrio, respira fundo, tentando não cair.
Tudo roda cada vez mais rápido, mais rápido, até as cores todas se misturarem e ficar tudo branco. Ausência de tudo, é o nada.
Silêncio absoluto, só o som de sua respiração, ofegante.
A força do branco pleno faz seus olhos arderem, lacrimejarem.
Aos poucos, os olhos vão se acostumando, a cor parece suavizar e consegue imaginar os vultos das coisas. Pressente o sofá, a estante, os quadros na parede, a enorme planta na lateral, os cacos do relógio no chão.
Muito vagarosamente, braços estendidos, caminha para o quarto. Um enorme relógio de parede ainda marca: onze horas e dezesseis minutos. Aquele estaria atrasado? Nunca, tem relógios por toda a casa, todos minuciosamente acertados, garantia de nunca perder a hora.
Vai até a cozinha – seria por ali o caminho? –, parece que esbarra nas coisas, mas vê o relógio em cima da mesa de almoço: onze horas e dezesseis minutos.
Pela casa toda, até no banheiro, neuroticamente distribuídos, os relógios, estáticos na mesma hora. Atitude radical, sem querer, tinha anulado o tempo.



quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O tempo

Eliane F.C.Lima

Colecionava páginas de calendário. Ia enfiando na gaveta para guardar os acontecimentos. Um dia, sem mais nem menos, colocou-as lado a lado sobre a mesa. Olhava para elas. Estava ali o passado. Ano a ano. Reconhecia algumas datas. O aniversário, a morte da tia. Porém, por mais que olhasse, não ouvia suas vozes. Eram páginas mudas. Mortas. Era como se o tempo que escorreu estivesse trancado em um cofre. Inacessível. Então fechou os olhos e lembrou o dia da morte da tia: o telefonema, o táxi, as pessoas, a tarde toda, o enterro. Agora o passado falava, tinha som, tinha cor, movimento. O passado revivia no presente. Viu que apenas o presente existia. De olhos fechados, ainda, pensou no futuro. Era mais difícil ainda, nenhuma imagem para ajudar. Grande esforço de concentração encenar o futuro. Que era isso: acontecia como representação de teatro, pura ficção. Enorme criatividade, sua mente era um talentoso dramaturgo. Mas nenhuma certeza. Abriu os olhos, o presente era momentâneo e certo: sobre a mesa muitas páginas de calendário. Todas mudas.

Esotérico

Eliane F.C.Lima

Desde o começo da aula, ele não queria escrever, amuado e encolhido. Instado, disse que estava com muita dor de cabeça.
A professora segurou a mão do menino. Começou a fazer uma massagem oriental para diminuir a dor. Massageou vagarosamente. O menino quieto, olhinhos fechados, sorriso na boca. Perguntado se a dor tinha passado, cabeça que não! Movimentos circulares, a dor não passava nunca. Professora desconfiou de malandragem. Finalmente, ele assentiu e começou a fazer os exercícios.
Na hora do recreio, sala dos professores, deram informação. Irmão de mais quatro e pais separados, cada um deles levou dois filhos. Ele, o mais velho, sobrou e foi para a casa de duas tias solteiras, que reclamavam da herança humana e do dinheiro, que não recebiam, para sustentar o garoto. Ameaçavam todo dia devolver o pequeno.
Só então a professora entendeu: o que tinha resolvido era o carinho ocidental.