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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As fotos do ano

Eliane F.C.Lima

Tinha resolvido deixar de filosofar e partir para as coisa práticas. Comprou uma máquina fotográfica e andava sempre com ela na bolsa. Testemunha da realidade. Pretendia coletar material. Cenas excepcionais, como a garça caminhando pelo parque. Tinha um arquivo grande e rico. De fazer inveja a muito fotógrafo de jornal.
Uma tarde, tirou três fotos de um pássaro enorme pousado na amurada de uma ponte. Como precaução. E a ave se deixando apanhar pela máquina. Indiferente. Até que o pássaro se foi, meio assustado. Ainda registrou seu voo, magníficas asas abertas.
À noite, no jornal da tevê, a notícia de um homem que tinha pulado de uma ponte. Achou que era a mesma, foi conferir.
Ligou o computador e descarregou as fotos do dia. Era a mesma ponte. E era o mesmo homem, lá no cantinho. Como não tinha visto, tão fascinada pelo pássaro estava?!
A sequência de fotos – coisa incrível! –, a partir da quarta, acompanhava a queda do tal. Que não tinha pulado, mas sido jogado. O responsável estava ali. Um especialista seria capaz de identificar.
Foi várias vezes ao telefone de informações, queria o da reportagem de um jornal. Pensou que não devia haver ninguém lá naquela hora.
Não dormiu à noite, ansiosa pelo dia seguinte.
Logo cedo, informada, ligou para o jornal. Não acreditaram de imediato. Teve de ameaçar ligar para o concorrente.
Em encontro sigiloso – tinha feito várias cópias –, entregou as fotos. Depois do furo de reportagem, a polícia entrou no caso. Descobriram o assassino e o resto caminhou como devia.
Tinha conseguido fotografar o imprevisível, que não era o pássaro: surpreendera o destino.
Entrou vários dias em reflexão. Há sempre, pelo menos, uma realidade a mais, diferente da que a gente vê. Sua realidade tinha sido o pássaro. Não fotografado, o homem teria se suicidado, não haveria um assassino. E ali, naquelas fotos, duas versões do animal: uma, seu voo altaneiro; outra, sua baixeza.


domingo, 18 de outubro de 2009

Eva

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Era um sítio pequeno, gente muito pobre. Pouca chuva. Uma ou outra plantação vingava. Mal dava para comer. E alimentar as várias bocas. Umas galinhas ciscadoras. Dois galos magros. Comiam o que achavam. Quase nada. Mas assim mesmo, os ovos salvavam a fome.
O pai caladão avisou à mulher: queria braços machos para ajudar. Desde a primeira gravidez, ele esperava um filho homem. A partir da terceira, já amarrava a cara, comunicado que era mais uma menina. Não entrava mais no quarto. Levava quase um mês para dirigir a palavra à coitada, que além da fome, das dores, dos trabalhos com o bebê e com as outras filhas, ainda carregava a culpa. Cada vez que se sentia prenha, entre a esperança do filho homem e o medo do desfecho. A cada nova menina, mais ódio do marido para si e para elas.
Não adiantava as pequenas madrugarem, trabalhadeiras, irem ajudar o pai, fazendo mais do que o possível, sem uma palavra de revolta. Eram responsáveis pela seca, pela terra árida. Ele nunca olhava direto para elas, ordens dadas de cabeça baixa. A mãe achava que ele nem sabia seus nomes. Custava a ir à cidade registrar, indiferença pela nova criança, capim ruim brotado entre as pedras.
À noite, à mesa, comia mudo, olhos fitando o nada. Era como se estivesse só. As meninas também nada falavam, temendo o pai.
Logo que ele ia para a cama, conversavam baixo, até sorriam. Mas não aguentavam muito, o corpo moído, sem condição de aproveitarem um pouco mais a felicidade de estarem sós, serem mulheres.
No quarto parto, avisado do sexo, saiu de casa e voltou apenas no dia seguinte, bêbado, o que nunca tinha feito. Quis bater na mulher e nas três filhas maiores. Nunca falou com o bebê; não fosse a mãe, cresceria órfã.
Um dia, pensando a mulher que estivesse já livre daquela tortura, muitos anos transcorridos, viu as regras faltarem. Escondeu sua descoberta, mas logo que a barriga começou a crescer, viu-se examinada pelo homem, coisa que há muito não ocorria, usada no sexo da mesma maneira bruta dos galos com as galinhas no terreiro.
Os padecimentos do estado acrescidos pela tensão constante, o pavor do dia do parto, as filhas incluídas no sofrimento. Sem esperança alguma.
Nas primeiras contrações, engoliu o lamento na boca, as dores menores do que o medo. Aguentou o quanto pôde, o marido e as filhas saindo para a roça. Quando foi a hora, deitou-se na cama e fez, sozinha, nenhuma surpresa e imensa aflição, a quinta filha nascer.
Pisada forte do marido, agarrou-se à criança. Ela sabia de tudo.
Não vendo a mulher na cozinha, ele irrompeu no quarto. Um safanão jogou a mãe desesperada para trás. Arrancou a criança, examinou-a, levando embora. As quatro filhas, estarrecidas em um canto, tremiam e choravam, ouvindo os gritos da mãe.
No terreiro, montado o burro magro emprestado, sumiu na poeira. Na estrada para outra cidade, desceu e esperou. Fez sinal para vários carros. No primeiro que parou, tirou o chapéu em cumprimento. Mentiu: era muito pobre e tinha quatro filhos. Sua mulher, acabada de dar à luz, morreu em seguida. Sem mãe e leite, a pobrezinha também ia morrer dali a poucas horas. Por Deus, fizesse a caridade de levar e salvar aquela inocente alma.
Tudo voltou ao normal. Menos a mulher: olhar para longe, fala sem nexo. Foi substituída na cozinha pela mais velha. As meninas cercando a mãe de carinho, se podiam. Penteando os cabelos já embranquecendo.
Coisa de dois anos, surpresa e revolta, o ventre da louca se avolumando. Agora o desespero era delas, alheia a outra.
Nos primeiros gritos da mãe – quem sabe lembrando o ocorrido – a mais velha, sozinhas as duas, levou-a para a cama. Fez o parto da mãe quase desfalecida. A moça aparou um menino magrinho, choro forte. Deu um sorriso, Mulher no paraíso saboreando a maçã.
Chegado o pai, ouviu o choro. Amarrou a cara:
- É menino homem – avisou a irmã.
Na cadeira, mão no peito, arfado forte. Entrou no quarto, a mãe amamentando começou a gritar. Entre os uivos da mulher, pegou a criança à força, sexo visto. Saiu do quarto com um largo sorriso na cara.
Naquela mesma noite, a mulher morreu. Desesperado, ele correu toda a vizinhança procurando outra mulher parida. Coisa fácil de achar.
Cresceu o menino. Alta a sua voz já esquecida, com ele o pai era outro, único pé de milho verde no meio da seca. As irmãs sempre na roça, a mais velha agora mãe do pequeno, agarrado em sua saia, fazendo sempre o que ela queria.
Logo o filho foi junto para a roça, aprender a lida, sol a pino, terra seca. Mês após mês, ano após ano.
Dia ainda escuro, pai levanta para o café. Filho já moço, bigodinho nascido, irmãs em volta. Sobre a mesa, uma mala velha. Do lado, comida amarrada, não para o eito.
- Que é isso? – pergunta o homem, já velho.
- Vou embora. Isso não é vida. Não quero morrer de fome aqui – olho rápido para a irmã mais velha, ela fixa nele.
O homem levanta o rosto direto para as filhas, há muito tempo não faz isso. São tantas. Falta uma. Todas cabeças baixas. Só a mais velha encara. Vê prazer nos olhos dela. Bota a mão no peito. Custa a falar, mas o que sai, sai seco:
- Daqui não sai! Preciso de você na roça.
- As meninas fazem isso sozinhas. São elas que fazem o milagre, o pai não vê?
Olha a irmã que vira o rosto firme para fora. Pega a mala, a trouxinha e sai rápido pela porta. Belo cabelo ao vento ainda frio. As irmãs viradas para o terreiro. Acenando.
No meio da pequena sala, um baque. A primogênita olha para trás: o roceiro caído, mão no peito, boca roxa, cara franzida. Erva daninha arrancada, murchando ao sol. Volta-se para a frente, sacode o braço com mais força para o rapaz que já vai sumindo na poeira do caminho.


(Para voltar para a análise deste conto em Literatura em vida 2, clique aqui).

sábado, 17 de outubro de 2009

Ovelha negra

Eliane F. C. Lima

De um dia para o outro, a casinha abandonada se viu habitada de novo para espanto da cidade, que, há muito, não tinha um bom motivo para se espantar.
Senhor passado dos sessenta anos – ninguém pôde fixar esse ponto –, ele mesmo pintou a casa, por dentro e por fora. Sempre de costas. Ninguém conseguiu dar um bom-dia ou boa-tarde. Não atendeu nem às palmas insistentes do verdureiro, convocado para assuntar. Não comprou o leite tiradinho na hora, de Mané de Elvira, porque não mostrou a cara para aquele “Ô de casa”. Na tendinha da esquina, nem um ovo comprado, o que um vivente sempre acontece de precisar, ou em dia de temporal, uma vela para acender. Nada.
Saía com um jipezinho meio velho. Fechava o portão, cara virada para dentro. Na certa comprava tudo fora e as miudezas de esquecimento: algodão, vela, palito, agulha e linha, lâmpadas várias.
A curiosidade não aguentou mais. O que um não sabe, esse um inventa: “Médico, tinha deixado um paciente morrer e foi para ali, curtir a culpa. Não queria ser reconhecido.” O contador e os ouvintes, aumentado o caso, cada um dando um palpite, iam para casa de alma lavada. Novidade esfriada, não satisfazia mais.
“Era um ex-presidiário. Pena cumprida, tinha voltado para casa e encontrado a mulher com outro.” Primeira versão: envergonhado e desiludido de tudo, sumira de casa. A outra: ele matara os dois e caíra no mundo.
Durante um tempo, vigiado a distância, o medo maior que a bisbilhotice.
- É um padre – o pedreiro-benzedor-eletricista na porta da padaria, enchendo os copos de cerveja dos amigos – Fez mal a uma mocinha lá na paróquia dele e teve que fugir.
Logo umas vinte pessoas batiam na porta do padre local, casa avarandadinha atrás da pequena igreja, meio ressabiadas. O santo homem, embora conselheiro de todas as horas, não dava asas à parolagem maldosa de suas ovelhas.
- Mas que história é essa?! – cortou aquele assim que ouviu a patacoada – É isso que vocês andam inventando também às minhas costas? – vinte cabeças sacudiram para um lado e para o outro, todas envergonhadas – E a Santa Igreja é para estar assim mal falada na boca do povo?! Se escrevo ao Papa, ele vem aqui em pessoa excomungar a cidade inteira.
Voltados para casa, ficaram lá trancados até o dia seguinte. Não viram o fusquinha do padre sair rumo à matriz da cidade vizinha. Lá pediu ao pároco para tomar informações seguras sobre o homem. Nenhuma evidência apurada ou notícia de algum caso daqueles, o próprio padre resolveu procurar o novo morador para acalmar as línguas do rebanho tão bem conhecido, integrando o homem à comunidade.
Vendo que o jipe do homem lá estava, bateu palmas na frente da casa: em vão. Depois chamou mais alto e forte. Deu a volta e gritou por trás, lá para os fundos da cozinha. Ninguém respondeu. Ao desistir, muitas cabeças se esconderam rapidamente para não serem escovadas ali mesmo, o padre com cara de fulo de raiva. O fusquinha, na toda, saiu levantando uma poeira tão densa quanto a ira do religioso.
No domingo, a cidade em peso foi à missa e quem se demorou não achou lugar para sentar. O carrancudo dono da farmácia, que tinha birra com a igreja, foi ali só para gozar a cara do representante de Roma.
Ritual começado, silêncio absoluto, a igreja toda só olhos e ouvidos para o padre. Ele oficiou a missa, sempre sério até a hora do sermão:
- Meus amigos, pela pureza e salvação das almas dessa comunidade, sou obrigado a revelar a vocês onde se esconde o demônio.

domingo, 11 de outubro de 2009

Pesadelo

Eliane F. C. Lima

Passava a noite sem dormir, vigia de posto. Havia uma cadeira, mas só podia tirar pestana. Em frente, a casa do aposentado, amigo do dono. Tinha insônia, o desgraçado, funcionário perfeito. Os anteriores foram dispensados por fofoca do tal.
De manhã, fala alta e alegre do empregado diurno, bem dormido. Saía trôpego, mas o sono adiado. Pegava em outra lojinha, na Saara, centro do Rio, olho atento no entra e sai, mercadorias ao alcance das mãos de má fé. Dormir fundo só depois do almoço, em casa. Filhos na escola, à tarde, condição imposta. Seu projeto de vida: quarto escuro, silêncio, uma cama.
A trégua era o ônibus até o centro da cidade, de um emprego para o outro. Sentava no canto. Não falassem com ele. Era uma meia hora mergulhado. Saltava no ponto final, acordado pelo grito do cobrador.
Quando entrou, procurou logo seu lugar. Tudo ocupado. Levanta um cristão. Do assento de fora.
Sentou, mas não teve sossego. Ia caindo no corredor. Segura com a mão, segura com o pé, cai para cima do outro passageiro, que já estava de cara feia. O sono não engata, olho aberto, olho fechado, olho aberto, olho fechado, olho aberto. As pálpebras escorregando, sem controle.
Olhar esgazeado, de zumbi. De repente, no canto aninhado. Leva um solavanco, sacudido o ombro. Era começo de sonho.
Senta reto no banco, posição de soldado no posto. Concentra os olhos na nuca do da frente. É pior. Não leva um minuto. Começa tudo de novo. Olho fechado, olho aberto, olho fechado. Segura com o pé, a mão aperta o banco da frente. Curva violenta, por um triz não vai ao chão.
O do canto não salta, aparafusado no assento. Rosto para fora, vendo as paisagens, dormiu a noite toda. Usurpador. O lugar que por direito era dele. Todos os dias sentava ali...
O pensamento submerge nas brumas. A realidade volta na primeira freada do ônibus, acordado de novo.
Ele quase chora. Novamente a luta: pé, mão, aberto, fechado, quase chão.
De repente, cutucado no ombro. O palerma do canto vai saltar. Canto vago. Nem pensa: se joga contra a janela. Olho fecha. Cabeça cai. Boca abre.
- Ponto final!

sábado, 3 de outubro de 2009

O melhor do mundo

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Fica horas em frente à televisão da loja. Chega mansinho, disfarçando, encosta na parede. No fim, perde o controle: senta no chão. Até que os vendedores enxotam da passagem. Então, acorda. Deixa o gramado, Ronaldinho expulso do jogo.
Sabe tudo do ídolo. Só assim. Entreolhando, espiadinha aqui, outra ali: sai de si. Não mora mais na rua. Não está mais sujo nas mãos, nos pés, nas orelhas. Não tem mais fome, nem falta de carinho. Não fugiu das surras do pai bêbedo, agora preso; da mãe, recebendo homens em casa, filhos postos para fora no meio da noite. Ele é amado, aplaudido, mora no estrangeiro. Aparece no comercial, sorrindo, faz maravilhas com a bola.
Os pedestres param na calçada. Alguns riem: ele gesticula, mexe pés e mãos, mímica inconsciente, dublê do outro. Não vê ninguém, nem a si mesmo, sombra de craque; não escuta nada, nem o ronco da barriga.
Dorme no Largo da Carioca, mas roda por Uruguaiana, Sete de Setembro, Avenida Rio Branco, atrás de televisão ligada. Pode ir até o Catete, chegar à Glória ou dar uma esticadinha até o fim do mundo.
Apelido: Doidinho, posto pelos companheiros de rua. Quase não fala. Só sussurra, age, pensa como o outro. É o outro. Acreditar na realidade é matar Ronaldinho, puro suicídio.
Troca tudo pelo aparelho mágico, mesmo a disputa pela comida. Recebe só a sobra dos amigos, de pena.
Não rouba, honestidade involuntária: não enxerga passantes, nem bolsas, nem celulares. Só grama, e bola e pernas e gol e grito e comemoração. Nem cheira cola, sua droga é mais forte.
Menino ainda, é muito magro, só olhos enormes, orelhas enormes, pés enormes: para ver o rosto moreno, para ouvir o sotaque amado, para andar em sua busca maluca. Por dentro: no peito, coração apaixonado; na cabeça, pura imaginação.
De manhã, olha os jornais. Procura ansiosa por retratos do jogador. E sorri, extasiado. Sem coragem para perguntar o que está escrito. Se vê a cara de outro que também olha a foto, confere a aceitação, a admiração. Se ouve elogio, derrete-se todo: elogiam Doidinho, admiram Doidinho, aceitam Doidinho.
À noite, outra tela. No sonho, Doidinho faz propaganda, dá entrevista, joga de novo com o corpo famoso. Acordando, é uma surpresa: só ele, Doidinho.
Hoje a polícia vem correndo atrás de camelô. Pedra para todo lado. Ronaldinho pula da televisão, corre, sonâmbulo, pela calçada. Um baque no peito. Matou a bola? Escorre suor ou sangue? Vertigem forte, somem as pessoas: nas nuvens, de avião voando para a África do Sul. Vai ganhar a Copa.